sexta-feira, março 01, 2013

NieA Under Seven (TV)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 15/06/2006.

Alternativos: NieA_7, NieA under 7 - domestic poor @nimation
Ano: 2000
Diretor: Tomokazu Tokoro
Estúdio: GENCO / Radix
País: Japão
Episódios: 13
Duração: 24 min
Gênero: Comédia / Drama / Sci-Fi


Talvez em função do estranho nome, NieA Under 7 não é um anime dos mais conhecidos, apesar de contar com nomes de peso em sua produção, como Yoshitoshi Abe (Serial Experiments Lain, Haibane Renmei) no desenho de personagens e Tomokazu Tokoro (Haibane Renmei) na direção. Verdade seja dita, a própria natureza deste anime é um tanto estranha e colabora para este relativo desconhecimento, o que é uma pena, tendo em vista o ótimo resultado alcançado pela equipe de produção. NieA Under 7 é um anime com um humor visualmente arrasador, nos moldes de KareKano e Azumanga Daioh, aliado a uma história surpreendentemente profunda.

Mayuko Chigasaki não leva uma vida das mais fáceis. Seus pais gerenciavam uma grande casa de banhos públicos no distrito de Enohana mas acabaram perdendo o controle do local e foram trabalhar no campo. Mayuko permaneceu, mas agora é uma funcionária da casa de banhos e ainda precisa entregar jornais bem cedinho, para que tenha o mínimo de dinheiro para pagar um cursinho pré-vestibular e, quem sabe, arrumar um pouquinho de comida. Para completar, Mayuko precisa se virar para conseguir um pouco de tranqüilidade para estudar, pois divide uma quartinho fuleiro dentro desta mesma casa de banhos com NieA, uma garota alienígena magricela e gritadeira que está sempre com fome e vive construindo naves espaciais dentro do quarto com pedaços de lixo que coleta na rua.

Ahem... alienígena? Exatamente... e NieA não é a única. No relativamente abandonado distrito de Enohana, existe uma população considerável de alienígenas humanóides, que vivem em perfeita harmonia com os humanos do local. Alguns anos antes, uma gigantesca nave trouxe estes alienígenas à Terra. A natureza desta nave e as razões pelas quais chegou aqui são uma incógnita, mas o fato é que, com a perfeita adaptação dos aliens à vida terrestre, esta "Nave-mãe" se tornou desnecessária e desapareceu... melhor dizendo, quase desapareceu. No fundo a nave ainda permanece visível nos céus de Enohana, bem ao longe, como um suave espectro, mas seus sinais não são mais captados pelas antenas dos alienígenas há bastante tempo.

Ahem... antenas? Sim, todos os alienígenas possuem antenas. Na verdade, quase todos: NieA é a única que não possui uma antena na cabeça e, por esta razão, é objeto constante de gozações por parte dos demais aliens, os quais a chamam de "Sem Antena". Para completar, os alienígenas se dividem em um sistema de castas semelhante ao existente na Índia, e NieA faz parte justamente da categoria mais baixa, "Under 7", o que a torna um pária ainda maior dentro de sua própria sociedade.

A pequena sinopse acima pode passar uma impressão errada, como se Mayuko e NieA fossem duas pobres sofredoras que vivem apenas a lamentar a própria sorte pelos cantos. Que diferença faz um bom roteiro! De certo modo, Mayuko e NieA possuem personalidades tão distintas quanto o Yin e o Yang, o que não impede que ambas possuam também um pouco das qualidades e defeitos em comum. Mayuko é uma estudante exemplar e educada, pouco afeita a badalações mas que não perde a oportunidade de dar uns belos sopapos em NieA. Também, é difícil manter a sanidade tendo a companhia de uma garota tão preguiçosa e zoneira quanto NieA, barulhenta, esfomeada e que causa uma verdadeira hecatombe por onde passa. Mas, em alguns momentos, o olhar zombeteiro de NieA muda, e nestes breves instantes ela emana uma serenidade e uma tristeza que não parecem compatíveis com seu temperamento agressivo. Até que ponto a forma com que Mayuko e NieA se expressam é verdadeira ou não? Não seriam a excessiva diligência de Mayuko com o trabalho ou a energia inesgotável de NieA apenas máscaras para esconder seus verdadeiros sentimentos?


NieA Under 7 possui uma gama de personagens realmente memoráveis além das supracitadas protagonistas. Do lado dos humanos, temos a estudante Chiaki Komatsu, fanática por UFOs que vira um Demônio da Tasmânia quando digita em seu laptop; a gerente da casa de banhos, Kotomi, bela e energética mulher que não desiste de mudar a situação do local de trabalho, sempre às moscas; Yoshioka, responsável pelas caldeiras da casa de banhos, fera na espada e com um temperamento bem psicótico; Chie, uma das crianças mais legais a aparecer em animes, obrigada a amadurecer mais cedo em função do pai nada maduro. Do lado dos alienígenas a coisa é ainda mais pesada, com personagens do calibre de Kaana, adolescente gritadeira que sempre usa roupas típicas chinesas, odeia NieA com todas as forças e se acha superior a todos, apesar de sempre captar linhas cruzadas com sua antena em forma de pirulito (!). E o que dizer do fantástico Chada, alienígena cabeçudo com cara de indiano que coloca "curry" em todos os pratos que prepara e, apesar de suas aulas de boas maneiras, não consegue ficar sem fazer comentários indecentes, especialmente para a pobre Mayuko.

Mas é claro que o "show" é de Mayuko e NieA. A primeira é uma personagem muito bem construída, se comportando de forma bem mais crível do que a maioria dos personagens normalmente presentes em animes, lidando com pressões e problemas de uma maneira natural, se retraindo ou estourando quando necessário. O trabalho da "seiyuu" Ayako Kawasumi (Natsuki Mogi em Initial D, Lafiel em Seikai no Monshou / Senki) é fundamental para o sucesso da personagem, convencendo nos momentos mais contemplativos da mesma forma que nas partes absolutamente insanas. NieA é uma personagem também cativante, apesar de que a sua gritaria às vezes se torna extremamente irritante, assim como a sua incrível capacidade de transformar a vida de Mayuko em um inferno o tempo todo. Ainda assim, é impossível não gostar desta personagem, especialmente à medida em que sua jornada vai se tornando mais clara. Incrível é perceber que a "seiyuu" responsável por sua dublagem insana, Yuko Miyamura, é também conhecida por ter feito a voz de outras duas personagens bem diferentes, Caska (Berserk) e Asuka Langley (Evangelion).

É notável o equilíbrio alcançado por Takuya Sato (Fate/Stay Night) na criação do roteiro desta série, uma vez que misturar humor cáustico com um tema mais sério nunca é tarefa das mais fáceis. O ritmo é muito bem cadenciado, todas as coisas ocorrem num fluxo harmônico, sem partes muito aceleradas ou arrastadas. Claro que, sem a ótima animação do estúdio Triangle Staff (Boogiepop Phantom, Serial Experiments Lain), grande parte deste sucesso não teria sido alcançado, pois o funcionamento da maior parte das cenas depende muito do visual (ótima animação nas partes cômicas, ótima fotografia nas partes sérias). Existem seqüências hilárias em NieA Under 7 capazes de rivalizar com partes clássicas de animes como Excel Saga e Dragon Half, como a busca por óleo alienigena na cratera após a floresta ou o fantástico episódio do torneio de jogos. Como curiosidade, o bacana tema de encerramento, Venus to Chiisana Kamisama, foi composto por Tsuneo Imahori (Trigun). Já o tema de abertura, "Koko Made Oide", é algo muito estranho... a música é legal, a letra, idem, mas o cantor SION... imaginem uma bizarra mistura de Bob Dylan, Bruce Springsteen e Bryan Adams para terem uma leve noção do que estou dizendo.

Surpreendente é ver como um anime com cenas cômicas tão fortes ainda possa se dar ao luxo de apresentar temas que fazem pensar, desde a questão do preconceito até a forma como a maior parte das pessoas leva a vida de forma extremamente automática. Classes baixas não são reconhecidas como dignas por pessoas do alto escalão, classes e títulos se tornam mais importantes do que o valor real das pessoas, vive-se preocupado apenas com o futuro sem curtir o presente... às vezes pode-se estar perdendo um tempo valioso com coisas não tão preciosas ou importantes, enquanto as pessoas que realmente valem à pena e que podem sumir do mapa de uma hora para outra são deixadas em segundo plano. E não dá para deixar de citar a interessante analogia feita entre a "Nave-Mãe" e Deus, como as pessoas teoricamente esclarecidas e "portadoras de antenas" não dão mais tanto valor a coisas espirituais, enquanto pessoas teoricamente inferiores e "sem antena" não deixam de separar um tempinho de suas vidas para propósitos mais elevados ou, pelo menos, tentam dar um pouco de atenção a algo além do puro materialismo. A parte do preconceito merece um destaque especial por dar um puxão de orelha no comportamento às vezes xenófobo dos próprios japoneses, os quais muitas vezes enxergam pessoas e hábitos de outros países como coisas "alienígenas".



NieA Under 7 não possui o refinamento de um Haibane Renmei ou de um Kino no Tabi, mas é uma grata surpresa que diverte e alimenta a alma ao mesmo tempo. É um anime que cresce na memória aos poucos, o que é um elogio e tanto, tendo em vista a quantidade absurda de animes dispensáveis produzidos em série a cada ano.


Marcelo Reis


 

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