segunda-feira, dezembro 05, 2016

Felidae (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 05/12/2016

Alternativos: Felidae: O Gato Detetive
Ano: 1994
Diretor: Michael Schaack
Estúdio: TFC Trickompany Filmproduktion Gmbh
País: Alemanha
Episódios: 1
Duração: 82 min
Gênero: Drama / Policial / Suspense



Considerada a animação mais cara da Alemanha à época, "Felidae" foi produzido em 1994 e contou com vários atores famosos em sua equipe de dublagem, como Ulrich Tukur ("A Vida dos Outros", "John Rabe"), Mario Adorf ("O Tambor", "Mistério na Neve") e, especialmente, Klaus Maria Brandauer, indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por "Entre Dois Amores" e conhecido pelas premiadas parcerias com o diretor húngaro István Szabó em "Mephisto", "Coronel Redl" e "Hanussen". Além disto, a trilha sonora orquestral foi composta pela inglesa Anne Dudley, uma das fundadoras da banda de synthpop Art of Noise e, ainda, vencedora do Oscar de Melhor Trilha Sonora em 1998 por "Ou Tudo Ou Nada". Querem mais? A música-tema "Felidae" foi composta e cantada em inglês por Boy George, ex-vocalista da banda Culture Club e que fez muito sucesso também em carreira-solo ao final da década de 80.

Imagino que ninguém esteja muito interessado no "pedigree" desta animação, pois o que importa mesmo é saber se, no final das contas, "Felidae" faz jus a todo este investimento. Então, sem mais delongas, vamos ao que interessa!

Baseado no livro homônimo que faz parte de uma série de oito livros escritos por Akif Pirinçci, o qual também atua como um dos roteiristas desta obra, "Felidae" é narrado pelo gato Francis, que conta sua própria história ao se mudar para um novo bairro. Seu dono, Gustav, é especialista em arqueologia egípcia, mas escreve romances baratos pra pagar as contas. Sempre que a situação piora, ambos se mudam para uma nova casa, o que Francis detesta. Apesar de gostar de seu dono, Francis o chama pela alcunha nada gentil de "amigo mentalmente retardado". E a julgar pela nova moradia escolhida por Gustav, um verdadeiro lixo e fedendo horrores, talvez Francis tenha toda a razão em chamá-lo assim.

Curioso e atento, Francis começa a explorar o ambiente, quando vê um gato parrudo e sem um dos olhos observando algo no quintal... um gato preto morto, com a garganta aberta. Bluebeard, o tal gato parrudo, diz a Francis que é o 4º gato morto na região nos últimos dias, e tem certeza que a culpa é dos "abridores de lata", apelido dado por ele aos seres humanos. Francis discorda, pois o pescoço da vítima não foi cortado mas, sim, dilacerado. Como os assassinatos não param, ele e Bluebeard começam a investigar a fundo o que está acontecendo, e se veem envolvidos numa trama ligada a fanatismo religioso, preconceito, eugenia, desejos sexuais e crueldade dos seres humanos em relação a animais de laboratório.

O orçamento generoso usado na produção de "Felidae" transparece em cada segundo na tela. Apesar de aparecerem alguns humanos na tela de vez em quando, a maior parte dos personagens realmente são gatos. O desenho de Paul Bolger transmite muito bem a personalidade de cada personagem, do olhar perscrutante e inteligente de Francis à expressão simplória, sincera e até um pouco feroz de Bluebeard. A animação propriamente dita é primorosa, mesmo nas cenas mais agitadas de ação, com tomadas de câmera inventivas e uma atenção impressionante aos detalhes de movimentação dos gatos - quem curte felinos ficará encantado com esta característica em especial. Por se tratar de uma animação com temática mais séria, que remete aos filmes "noir" dos anos 30, o uso de luz e sombra é crucial para se passar a sensação de perigo constante à espreita, e a equipe de animação conseguiu isto com louvor. A qualidade geral é comparável às melhores animações de Don Bluth (Fievel, A Ratinha Valente), o que não é pouca coisa.


Ao longo da narrativa, os sonhos de Francis são fundamentais para desvendar os crimes que estão ocorrendo - é como se o subconsciente dele usasse as informações absorvidas conscientemente ao longo do dia e tentasse interpretar tudo aquilo de forma abstrata e subjetiva. E estes sonhos são um capítulo à parte, verdadeiras viagens psicodélicas que lembram muito as fantásticas animações de Gerald Scarfe em "The Wall".

Um detalhe muito legal é que apesar dos gatos conversarem entre si, sendo que alguns conseguem até ler livros (como o próprio Francis), eles não falam com os humanos e continuam se comportando como gatos comuns. Por exemplo, se a tensão está muito grande e é preciso espairecer, nada melhor do que caçar alguns ratos e comê-los ali mesmo, sem piedade, cravando unhas e dentes na carne crua dos roedores.

Mostrando que não é, nem de longe, uma animação indicada para crianças, "Felidae" possui cenas muito pesadas, com direito a vísceras expostas, cabeças cortadas, torturas terríveis em laboratório - destaque para um dos sonhos de Felidae, com imagens tão chocantes que mais parecem um Holocausto felino. Além disto, há algumas gravuras explícitas do Kama Sutra emolduradas na parede de uma mansão e, ainda, uma cena de sexo não-explícita entre dois felinos. Portanto, papais e mamães, nada de mostrarem este lindo desenho de gatinhos pra sua prole, se não quiserem causar um trauma daqueles nas crianças. E amantes de gatos e animais em geral, preparem o coração, pois a coisa aqui é de tirar o sono.

Se tem uma coisa que decepciona um pouco em "Felidae", por incrível que pareça, é sua história. Não me entendam mal: o roteiro faz tudo direitinho, torna a obra interessante, dando a ela um ritmo narrativo invejável. O problema é que a trama propriamente dita, no fim das contas, é muito "feijão-com-arroz": tem toda uma teoria envolvendo Mendel e a seleção genética por trás dos assassinatos, uma fachada religiosa para ocultar as verdadeiras motivações do assassino, mas qualquer um que já tenha lido alguns romances policiais ou assistido filmes do gênero conseguirá adivinhar o desenrolar dos fatos e o desfecho do caso praticamente na metade do filme. Não é uma história ruim: apenas uma história policial comum. E ainda tem um dos clichês mais batidos do "Universo dos Clichês": um computador que precisa ser acessado com urgência e que possui uma senha de proteção absolutamente ridícula, aff...

Muita gente não gosta de "Felidae" por considerarem-no uma obra apelativa, que usa e abusa de imagens fortes e de violência contra animais para contar uma história simples. Pessoalmente, isto não me incomodou nem um pouco, até mesmo porque eu já sabia o que esperar de "Felidae" neste aspecto. Acho até que a história abre o olho do espectador para as crueldades feitas em nome da ciência e da religião, e as imagens chocantes ajudam a passar a mensagem com mais propriedade.



Com personagens excelentes, incluindo um vilão convincente e com motivações justas para o que faz, e uma qualidade técnica irrepreensível em todos os aspectos, "Felidae" é uma pequena jóia do mundo da animação, infelizmente pouco conhecida no Brasil, apesar de ter sido lançada por aqui em VHS, com o nome "Felidae - O Gato Detetive".


Marcelo Reis


 

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