sexta-feira, dezembro 16, 2016

Curtas sobre Curtas #05

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 16/12/2016

Mais uma edição da seção "Curta sobre Curtas", desta vez com duas animações memoráveis, mas pesadíssimas, ligadas às bombas nucleares, ao horror da guerra e ao fim do mundo.



PIKADON

"Pikadon" é um neologismo do idioma japonês, surgido à época das explosões nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, usado por sobreviventes para descrever o que havia causado tamanha destruição. Esta palavra é formada pela junção das palavras "pika" (luz brilhante) e "don" (estrondo). E foi esta palavra que Renzo Kinoshita (produtor e diretor) e sua esposa Sayoko (roteirista) escolheram para dar nome a esta animação produzida em 1978.

"Pikadon" se inicia mostrando um pouco do que parecia ser mais um dia comum na cidade de Hiroshima. Crianças brincando, indo pra escola, fazendo ginástica no pátio. Mães preparando o café-da-manhã pra família. Pais brincando com os filhos ou indo pro trabalho. Operários e operárias trabalhando em fábricas. O desenho de personagens apresenta traços realistas e tipicamente japoneses, e os cenários são detalhados, representando bem a arquitetura da cidade à época. E a animação possui uma qualidade incrível, especialmente por se tratar de uma animação independente, produzida por um pequeno estúdio (Lotus).

Hiroshima era uma das poucas cidades japoneses praticamente intocadas por ataques aéreos americanos. Ao escolher as possíveis cidades-alvo para um ataque com a bomba atômica, os EUA buscaram localidades importantes em relação ao esforço de guerra japonês (fábricas de munição, portos, refinarias de petróleo, etc) mas, também, que tivessem uma área urbana de tamanho considerável e que tivessem sofrido poucos danos ao longo da guerra. Tudo isto para que a explosão arrasadora causasse também um enorme impacto psicológico nos japoneses.

Justamente por quase não ter sentido na pele o efeito de ataques aéreos, a população de Hiroshima não se assustava com a presença de bombardeiros americanos sobre a cidade, já que quase sempre estavam em missão de reconhecimento. Muitos até mesmo acenavam pros aviões, rindo e se divertindo com tudo aquilo. Infelizmente, às 8h15 do dia 06 de agosto de 1945, o horror supremo se abate sobre a cidade, com a detonação de Little Boy, uma bomba atômica à base de urânio com potência estimada em 16 quilotons de TNT.

Corpos desintegrados, despedaçados. Olhos que saltam pra fora da órbita. Pele e carne se desprendendo dos ossos. Todas aquelas pessoas, outrora cheias de vida, agora estavam mortas ou literalmente em pedaços. E horror dos horrores: praticamente 70% dos quase 70 mil mortos eram civis.

As cenas criadas por Renzo Kinoshita e sua equipe são impressionantes, e o uso de algumas imagens reais misturadas às animações aumentam ainda mais o impacto para o espectador, talvez por nos lembrar que todo aquele horror realmente aconteceu, não sendo apenas obra da imaginação de um artista.

Algumas cenas de "Gen - Pés Descalços", como a mãe que tenta proteger o bebê, parecem ter sido inspiradas por "Pikadon". Pessoalmente, apesar de adorar o mangá e o anime de "Gen - Pés Descalços", considero "Pikadon" uma obra mais marcante e impressionante. Com personagens de traços mais realistas, narrativa que não apela pra pieguice e imagens terríveis, "Pikadon" é um dos mais fortes manifestos audiovisuais contra a abominação que são as armas nucleares. Doloroso, triste, revoltante e obrigatório.



A SHORT VISION

Quem não viveu a tensão do período da Guerra Fria talvez não entenda o impacto que esta animação britânica produzida em 1956 causou à época de seu lançamento. Eu peguei a reta final deste período de relações tensas entre EUA e URSS, em que o mundo ficava à beira de um ataque de nervos, imaginando que uma guerra nuclear poderia estourar a qualquer momento. Se este período da década de 80 já era infernalmente tenso, imaginem para quem viveu no período logo após a II Guerra Mundial, assim que a URSS de Stalin desenvolveu sua própria bomba atômica em 1949 e, depois, com o surgimento das apocalípticas bombas termonucleares (EUA em 1952, URSS em 1953). Pela 1ª vez na história, o fim do mundo não apenas era realmente possível, mas até mesmo provável.

Foi neste ambiente turbulento e de muito medo que Peter Foldes, húngaro radicado na Grã-Bretanha, e sua esposa Joan, britânica de nascimento, produziram "A Short Vision", numa tentativa de alertar o mundo para os riscos reais de aniquilação completa da vida na Terra.

Com uma narrativa em "off" presente o tempo todo que mais parece alguém contando uma história infantil, somos informados da existência de um objeto voador grande e indefinido, vindo de bem longe em direção a uma grande cidade. Animais que vivem num bosque próximo, tanto predadores quanto presas, sentem o perigo que se aproxima e procuram abrigo. A população civil dorme, ignorando totalmente o que está por vir. Os líderes estão acordados, mas percebem o que vai acontecer quando já é tarde demais.

Em termos técnicos, "A Short Vision" possui traços bem simples e animação idem, mas ambos são extremamente eficientes em passar a atmosfera de pânico e horror a que a obra se propõe. Os cenários não são muito detalhados, os animais parecem ter sido feitos com recortes e possuem aparência mais cartunesca. As pessoas, por outro lado, foram desenhadas com realismo, o que aumenta o impacto das cenas, pois nos identificamos com elas, e percebemos com clareza que aquilo poderia acontecer a qualquer um de nós.

E "A Short Vision" é uma animação que impressiona, e muito. O horror não poupa ninguém, e o destino cruel de todos é mostrado em detalhes, com rostos que vão se desfigurando e se desfazendo, deixando apenas os ossos. Interessante é perceber que, em nenhum momento, é feita qualquer alusão direta a um ataque nuclear nas palavras do narrador, mas não é preciso ser gênio para saber do que se trata.

"A Short Vision" foi exibido em horário nobre nos EUA, no programa de Ed Sullivan, gerando uma repercussão tão grande que muitos comparam seu efeito ao pânico gerado por Orson Welles em sua narração radiofônica de "Guerra dos Mundos" em 1938. No programa de 27 de maio de 1956, Ed Sullivan explicou do que se tratava, pediu aos pais que tirassem as crianças da sala, devido ao tema sombrio e imagens chocantes da animação. Muitas crianças não saíram, e ficaram traumatizadas por anos com o que viram. Houve muitas queixas contra Ed Sullivan de pessoas que acharam um absurdo a exibição de algo como aquilo na TV, mas o efeito da obra foi tão forte que duas semanas depois, em 10 de junho de 1956, "A Short Vision" foi exibido novamente por Ed Sullivan.

Interessante que uma animação tecnicamente simples, de pouco mais de 5min, tenha sido capaz de causar mais impacto na opinião pública americana do que todas as notícias e imagens reais sobre o assunto exibidas até então. Mas basta assistir uma única vez a esta incrível animação para entender o motivo de tudo isto. Clássico absoluto.


Marcelo Reis


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