terça-feira, dezembro 20, 2016

My Sister Momoko (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 20/12/2016

Alternativos: Momoko, Kaeru no Uta ga Kikoeru yo
Ano: 2003
Diretor: Setsuko Shibuichi
Estúdio: Magic Bus
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 80 min
Gênero: Drama



Em seu perfil aqui mesmo no Animehaus, o M4rc0 AFRL falou algo com o qual concordo, apesar de ter uma dificuldade tremenda para colocar isto em prática. Usando as próprias palavras dele: "A obra cumpre o que promete se fizer o que ela veio para fazer e se fizer isto bem feito. Se um anime de ação tem muita ação bem feita, ele fez o que tinha que fazer e o que vier a mais é lucro". No meu caso, por exemplo, evito ao máximo pegar aqueles "shounen" bem "shounen" mesmo, tipo DBZ ou Cavaleiros do Zodíaco, pois tenho certeza que não conseguirei dissociar meu gosto pessoal da qualidade inerente às obras.

Comecei o texto dizendo isto porque, pela 1ª vez em muito tempo, estou resenhando um anime em que realmente preciso avaliar sua qualidade como obra audiovisual, mas ter o bom senso de dissociá-la da forma como cumpre sua verdadeira proposta. "My Sister Momoko" não é exatamente um anime brilhante em nenhum aspecto, mas possui um tema importante e passa sua mensagem de forma eficiente e sincera, especialmente ao seu público-alvo.

Dois irmãos gêmeos nascem de um parto complicado e prematuro. Por terem vindo ao mundo dois meses antes do previsto, nasceram muito fracos e com a sobrevivência ameaçada. Nestes dias tensos em que não sabia se os filhos sobreviveriam, o pai das crianças vê um pessegueiro florescendo em pleno frio, e inspirado pela força de vontade da árvore, resolve dar aos filhos os nomes Momoko (menina-pêssego) e Riki (força).

As crianças sobrevivem, o futuro parece promissor, mas a partir dos cinco anos de idade, por algum motivo desconhecido, Momoko desenvolve uma doença que torna a musculatura dos membros cada vez mais rígida. Até seus pulmões começaram a enrijecer e, por este motivo, ela precisa usar oxigenação artificial o tempo todo para poder respirar. Por causa disto, Momoko ficou bem menor que o irmão Riki, com a cabeça meio torta para o lado, e os membros extremamente atrofiados. Como a garota também apresenta um pouco de atraso mental, precisou mudar para uma escola especial, o que lhe causou um pouco de tristeza, já que antes ela estudava na mesma sala do irmão, fazendo exatamente as mesmas coisas que ele.


Apesar de tudo, Momoko é uma criança alegre, com muita energia, que não gosta nem um pouco quando outras pessoas tentam ajudá-la a fazer as coisas, e recebe todo o incentivo da família para tentar superar os limites. E sua felicidade aumenta ainda mais ao saber que a política de inclusão social nas escolas permitiu que ela voltasse a estudar no antigo colégio. Mas ainda que sua vida pareça boa, é óbvio para todos que a doença cobra o seu preço: qualquer resfriado pode ser uma ameaça real à vida de Momoko, que precisa passar por internações cada vez mais frequentes, e seu futuro próximo, aos poucos, se torna cada vez mais ameaçado.

"My Sister Momoko" nem parece ter sido feito originalmente para cinema, pois possui uma animação bem simples, inclusive inferior à de muitas séries de TV de maior orçamento. O desenho de personagens de Setsuko Shibuichi, que é também a diretora deste filme, é muito agradável e bonitinho, mas extremamente genérico. A trilha sonora, por outro lado, é muito bonita, com alguns temas clássicos mais imponentes, e algumas seções mais baseadas em flautas, com melodias que emocionam.

Akari Hoshi, autora do livro em que este anime é baseado, trabalha em uma escola para crianças com deficiências, e usou esta experiência de vida para escrever livros sobre o assunto, buscando conscientizar o público em geral para a necessidade de tolerência com estas crianças, e sua inclusão no mundo das pessoas ditas "normais". E "My Sister Momoko" cumpre muito bem esta função, mostrando que uma criança com deficiência pode ter uma vida plena e feliz, assim como sua família e as pessoas próximas. Por outro lado, é realista ao mostrar que nem tudo são rosas, que há sofrimento e problemas para todos os envolvidos, em especial a sensação de impotência quando existe algum risco de morte para a criança deficiente.

A história propriamente dita não é muito diferente de muitas coisas que já vimos por aí, e é previsível de dar dó. Dá pra saber desde o início exatamente qual o rumo a história tomará; quais eventos aparentemente banais ao longo da obra voltarão de forma apoteótica próxima ao final; que os antagonistas não são tão maus quanto parecem; que as tragédias serão exploradas de forma piegas e um pouco apelativas, e assim por diante. Além disto, por se tratar de uma obra mais voltada aos jovens, há coisas que parecem mais adequadas a um "shounen", como toda a parte envolvendo uma competição de corrida, com direito a gritos histéricos e tudo o mais.

E aqui entra a questão de analisar a obra de acordo com o que ela se propõe. "My Sister Momoko" pode não ser o mais memorável dos animes, mas é perfeito para o público jovem ao qual se destina. Mostra de forma didática que uma criança deficiente pode não conseguir fazer tudo o que quer, mas sente as coisas como qualquer pessoa. Demonstra ainda a importância da união da família ao longo de todo o processo, para evitar que aconteçam fatos desagradáveis como o divórcio dos pais, o abandono da família por um dos cônjuges, o preconceito por parte de parentes, entre outras coisas.



O texto pode ter passado uma impressão estranha, de que talvez eu não tenha gostado de "My Sister Momoko". Pelo contrário: pode não ser uma obra fantástica, mas é um anime de muito boa qualidade, que diverte e emociona de verdade. E para os jovens, considero um anime obrigatório, especialmente neste mundo louco de hoje em dia, em que o preconceito e a intolerância atingem níveis alarmantes. Aprender a respeitar o diferente é absolutamente fundamental.


Marcelo Reis


 

sexta-feira, dezembro 16, 2016

Curtas sobre Curtas #05

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 16/12/2016

Mais uma edição da seção "Curta sobre Curtas", desta vez com duas animações memoráveis, mas pesadíssimas, ligadas às bombas nucleares, ao horror da guerra e ao fim do mundo.



PIKADON

"Pikadon" é um neologismo do idioma japonês, surgido à época das explosões nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, usado por sobreviventes para descrever o que havia causado tamanha destruição. Esta palavra é formada pela junção das palavras "pika" (luz brilhante) e "don" (estrondo). E foi esta palavra que Renzo Kinoshita (produtor e diretor) e sua esposa Sayoko (roteirista) escolheram para dar nome a esta animação produzida em 1978.

"Pikadon" se inicia mostrando um pouco do que parecia ser mais um dia comum na cidade de Hiroshima. Crianças brincando, indo pra escola, fazendo ginástica no pátio. Mães preparando o café-da-manhã pra família. Pais brincando com os filhos ou indo pro trabalho. Operários e operárias trabalhando em fábricas. O desenho de personagens apresenta traços realistas e tipicamente japoneses, e os cenários são detalhados, representando bem a arquitetura da cidade à época. E a animação possui uma qualidade incrível, especialmente por se tratar de uma animação independente, produzida por um pequeno estúdio (Lotus).

Hiroshima era uma das poucas cidades japoneses praticamente intocadas por ataques aéreos americanos. Ao escolher as possíveis cidades-alvo para um ataque com a bomba atômica, os EUA buscaram localidades importantes em relação ao esforço de guerra japonês (fábricas de munição, portos, refinarias de petróleo, etc) mas, também, que tivessem uma área urbana de tamanho considerável e que tivessem sofrido poucos danos ao longo da guerra. Tudo isto para que a explosão arrasadora causasse também um enorme impacto psicológico nos japoneses.

Justamente por quase não ter sentido na pele o efeito de ataques aéreos, a população de Hiroshima não se assustava com a presença de bombardeiros americanos sobre a cidade, já que quase sempre estavam em missão de reconhecimento. Muitos até mesmo acenavam pros aviões, rindo e se divertindo com tudo aquilo. Infelizmente, às 8h15 do dia 06 de agosto de 1945, o horror supremo se abate sobre a cidade, com a detonação de Little Boy, uma bomba atômica à base de urânio com potência estimada em 16 quilotons de TNT.

Corpos desintegrados, despedaçados. Olhos que saltam pra fora da órbita. Pele e carne se desprendendo dos ossos. Todas aquelas pessoas, outrora cheias de vida, agora estavam mortas ou literalmente em pedaços. E horror dos horrores: praticamente 70% dos quase 70 mil mortos eram civis.

As cenas criadas por Renzo Kinoshita e sua equipe são impressionantes, e o uso de algumas imagens reais misturadas às animações aumentam ainda mais o impacto para o espectador, talvez por nos lembrar que todo aquele horror realmente aconteceu, não sendo apenas obra da imaginação de um artista.

Algumas cenas de "Gen - Pés Descalços", como a mãe que tenta proteger o bebê, parecem ter sido inspiradas por "Pikadon". Pessoalmente, apesar de adorar o mangá e o anime de "Gen - Pés Descalços", considero "Pikadon" uma obra mais marcante e impressionante. Com personagens de traços mais realistas, narrativa que não apela pra pieguice e imagens terríveis, "Pikadon" é um dos mais fortes manifestos audiovisuais contra a abominação que são as armas nucleares. Doloroso, triste, revoltante e obrigatório.



A SHORT VISION

Quem não viveu a tensão do período da Guerra Fria talvez não entenda o impacto que esta animação britânica produzida em 1956 causou à época de seu lançamento. Eu peguei a reta final deste período de relações tensas entre EUA e URSS, em que o mundo ficava à beira de um ataque de nervos, imaginando que uma guerra nuclear poderia estourar a qualquer momento. Se este período da década de 80 já era infernalmente tenso, imaginem para quem viveu no período logo após a II Guerra Mundial, assim que a URSS de Stalin desenvolveu sua própria bomba atômica em 1949 e, depois, com o surgimento das apocalípticas bombas termonucleares (EUA em 1952, URSS em 1953). Pela 1ª vez na história, o fim do mundo não apenas era realmente possível, mas até mesmo provável.

Foi neste ambiente turbulento e de muito medo que Peter Foldes, húngaro radicado na Grã-Bretanha, e sua esposa Joan, britânica de nascimento, produziram "A Short Vision", numa tentativa de alertar o mundo para os riscos reais de aniquilação completa da vida na Terra.

Com uma narrativa em "off" presente o tempo todo que mais parece alguém contando uma história infantil, somos informados da existência de um objeto voador grande e indefinido, vindo de bem longe em direção a uma grande cidade. Animais que vivem num bosque próximo, tanto predadores quanto presas, sentem o perigo que se aproxima e procuram abrigo. A população civil dorme, ignorando totalmente o que está por vir. Os líderes estão acordados, mas percebem o que vai acontecer quando já é tarde demais.

Em termos técnicos, "A Short Vision" possui traços bem simples e animação idem, mas ambos são extremamente eficientes em passar a atmosfera de pânico e horror a que a obra se propõe. Os cenários não são muito detalhados, os animais parecem ter sido feitos com recortes e possuem aparência mais cartunesca. As pessoas, por outro lado, foram desenhadas com realismo, o que aumenta o impacto das cenas, pois nos identificamos com elas, e percebemos com clareza que aquilo poderia acontecer a qualquer um de nós.

E "A Short Vision" é uma animação que impressiona, e muito. O horror não poupa ninguém, e o destino cruel de todos é mostrado em detalhes, com rostos que vão se desfigurando e se desfazendo, deixando apenas os ossos. Interessante é perceber que, em nenhum momento, é feita qualquer alusão direta a um ataque nuclear nas palavras do narrador, mas não é preciso ser gênio para saber do que se trata.

"A Short Vision" foi exibido em horário nobre nos EUA, no programa de Ed Sullivan, gerando uma repercussão tão grande que muitos comparam seu efeito ao pânico gerado por Orson Welles em sua narração radiofônica de "Guerra dos Mundos" em 1938. No programa de 27 de maio de 1956, Ed Sullivan explicou do que se tratava, pediu aos pais que tirassem as crianças da sala, devido ao tema sombrio e imagens chocantes da animação. Muitas crianças não saíram, e ficaram traumatizadas por anos com o que viram. Houve muitas queixas contra Ed Sullivan de pessoas que acharam um absurdo a exibição de algo como aquilo na TV, mas o efeito da obra foi tão forte que duas semanas depois, em 10 de junho de 1956, "A Short Vision" foi exibido novamente por Ed Sullivan.

Interessante que uma animação tecnicamente simples, de pouco mais de 5min, tenha sido capaz de causar mais impacto na opinião pública americana do que todas as notícias e imagens reais sobre o assunto exibidas até então. Mas basta assistir uma única vez a esta incrível animação para entender o motivo de tudo isto. Clássico absoluto.


Marcelo Reis


sexta-feira, dezembro 09, 2016

Flowers of Evil (TV)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 09/12/2016

Alternativos: Aku no Hana, The Flowers of Evil
Ano: 2013
Diretor: Hiroshi Nagahama
Estúdio: ZEXCS
País: Japão
Episódios: 13
Duração: 24 min
Gênero: Drama / Psicológico / Romance



Para quem é fã radical de animações de qualidade, a palavra "rotoscopia" costuma dar arrepios. Esta técnica, criada por Max Fleischer em 1915, consiste em filmar pessoas e cenários reais para, depois, desenhar e colorir por cima. Por esta razão, é considerada por muitos como uma solução simplista, preguiçosa e pouco artística, ainda que tenha sido usada extensivamente em grandes obras como "Branca de Neve e os Sete Anões", de Walt Disney, "A Ratinha Valente", de Don Bluth, e os jogos "Karateka" e "Prince of Persia", de Jordan Mechner.

"Flowers of Evil", baseado no mangá "Aku no Hana", de Shuuzou Oshimi, é considerado o 1º anime realizado exclusivamente com a técnica de rotoscopia. Muita gente provavelmente torcerá o nariz para este anime em função disto, mas quem estiver disposto a dar uma chance e assistir à série, será brindado com uma das obras mais impactantes dos últimos anos: um brilhante estudo de personagens e um mergulho profundo nas áreas mais ocultas da psique humana.

Takao Kasuga é um aluno mediano e caladão do Ensino Médio. Ao contrário dos colegas, ele não é muito fã de games, preferindo devorar livros e mais livros, os quais pega emprestado do pai ou compra num sebo da pequena cidade de Kiryu, onde mora. Takao tem predileção por escritores do surrealismo, especialmente pelo francês Charles Baudelaire, cuja imagem ele mantém num porta-retrato em posição de destaque em seu quarto. Takao anda obcecado por "Flores do Mal", de Baudelaire, dizendo inclusive que o livro mudou completamente sua vida e sua forma de ver o mundo.

Mas Baudelaire não é o único ídolo de Takao: o rapaz também venera a bela colega Nanako Saeki, a melhor aluna de sua turma. Takao considera Nanako a sua musa inspiradora, sonha em ter alguma chance de um relacionamento com a garota, mas nunca tem coragem de partir para a ação. Mas um determinado evento leva o rapaz a um ato impulsivo, embrenhando-o em uma rede de chantagens e desafios impostos por Sawa Nakamura, colega considerada totalmente louca, com um olhar demoníaco e que não respeita a autoridade de ninguém. É um caminho sem volta: a vida de Takao nunca mais será a mesma.

Indo direto à parte técnica, o visual da série causa um pouco de estranhamento no início. Estamos acostumados a ver animes com visual estilizado, traços característicos e tudo o mais. Ver um anime praticamente com aparência de um J-Drama é um negócio bem diferente mas, verdade seja dita, foi a escolha perfeita para esta obra. A palheta de cores dessaturada passa uma impressão de um ambiente meio irreal, e o uso de cores mais chapadas gera contrastes marcantes - temos as imagens de um mundo real com um tratamento gráfico que "desumaniza" o ambiente, e o efeito é desconcertante. E ainda há momentos com animação tradicional pura que dão um toque todo especial às cenas: as "flores do mal" propriamente ditas, o "inferno" que surge ao fundo num dos episódios finais, entre outros


"Flowers of Evil" possui personagens complexos e bem desenvolvidos. Takao Kasuga, com seu andar encurvado, parece querer se fechar, como se buscasse esconder do mundo suas verdadeiras intenções, e seu olhar triste indica ao mesmo tempo desespero e vazio emocional. Nanako Saeki é bela e admirada por todos, mas esconde seus medos e anseios para que ninguém saiba o quanto é vulnerável, e apesar de ter praticamente tudo o que alguém almeja, ela também aparenta buscar algo além daquela vida comum e rotineira.

Mas "Flowers of Evil" não seria nada sem Sawa Nakamura. A garota chega a parecer um verdadeiro demônio em algumas partes - não é à toa que possui um cabelo avermelhado, totalmente diferente das demais pessoas - e seu comportamento totalmente imprevisível e explosivo em relação a Takao nos deixa tão tensos quanto o rapaz, na expectativa de que o pior possa acontecer a qualquer momento. Ao mesmo tempo, Nakamura simplesmente odeia tudo o que é comum ou chato, e ela enxerga em Takao, no pequeno desvio de conduta do rapaz, a centelha de alguém tão "pervertido" quanto ela. Nada a fará desistir de sua missão de "derrubar os muros" ao redor de Takao, para que ele finalmente mostre o que se esconde debaixo daquela aparente normalidade.

Um detalhe muito interessante nesta série: ela possui 4 temas de abertura diferentes, e cinco versões diferentes do tema de encerramento. Vale a pena prestar atenção em todos, pois eles dizem muito a respeito de cada um dos personagens principais. As músicas em si não são agradáveis de se ouvir, talvez para mostrar que o interior de cada um deles não é totalmente equilibrado. As cores das folhas das flores indicam claramente de quem se trata cada tema de abertura: verde para Takao, rosa para Sawa, azul para Nanako e as três cores juntas, logicamente, para os três. E o tema de encerramento, "Hana - A Last Flower", e um negócio estranhíssimo, cantada por uma voz sintetizada distorcida (provavelmente usando Vocaloid ou Chipspeech) e numa cadência toda errática. As versões variam de acordo com o que acontece no episódio: são diferenças sutis, mas que potencializam o efeito do que o espectador acabou de ver.

Em "O Mal-Estar na Civilização", Sigmund Freud diz que a cultura domina e subjuga o animal que existe dentro de nós, para que seja possível a vida em sociedade. Isto reprime e inibe a pulsão sexual que existe em cada um, e toda esta energia acaba canalizada para o trabalho e outras atividades pouco prazerosas, resultando em uma multidão de pessoas infelizes e insatisfeitas. Sawa Nakamura luta justamente para que Takao tire esta máscara de homem culto e civilizado e mostre sua verdadeira face. Para ela, um homem e uma mulher não buscam valores elevados um no outro: o que os atrai é puramente sexo, e todo o resto é bobagem e perda de tempo.



"Flowers of Evil" não é uma série fácil de se ver. A viagem de Takao, Sawa e Nanako é pesada, extenuante, nos faz refletir sobre nossas próprias vidas e sobre até que ponto jogamos fora nosso precioso tempo, presos a convenções e tarefas impostas pelo sistema. Tirando alguns pequenos tropeços narrativos em pontos esparsos, é uma série imperdível, dirigida com precisão cirúrgica por Hiroshi Nagahama (Mushishi, Detroit Metal City), com enquadramentos perfeitamente calculados, efeitos sonoros que dão um clima de pesadelo, personagens inesquecíveis e um impacto emocional que custa a sair da mente.


Marcelo Reis


 

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Felidae (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 05/12/2016

Alternativos: Felidae: O Gato Detetive
Ano: 1994
Diretor: Michael Schaack
Estúdio: TFC Trickompany Filmproduktion Gmbh
País: Alemanha
Episódios: 1
Duração: 82 min
Gênero: Drama / Policial / Suspense



Considerada a animação mais cara da Alemanha à época, "Felidae" foi produzido em 1994 e contou com vários atores famosos em sua equipe de dublagem, como Ulrich Tukur ("A Vida dos Outros", "John Rabe"), Mario Adorf ("O Tambor", "Mistério na Neve") e, especialmente, Klaus Maria Brandauer, indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por "Entre Dois Amores" e conhecido pelas premiadas parcerias com o diretor húngaro István Szabó em "Mephisto", "Coronel Redl" e "Hanussen". Além disto, a trilha sonora orquestral foi composta pela inglesa Anne Dudley, uma das fundadoras da banda de synthpop Art of Noise e, ainda, vencedora do Oscar de Melhor Trilha Sonora em 1998 por "Ou Tudo Ou Nada". Querem mais? A música-tema "Felidae" foi composta e cantada em inglês por Boy George, ex-vocalista da banda Culture Club e que fez muito sucesso também em carreira-solo ao final da década de 80.

Imagino que ninguém esteja muito interessado no "pedigree" desta animação, pois o que importa mesmo é saber se, no final das contas, "Felidae" faz jus a todo este investimento. Então, sem mais delongas, vamos ao que interessa!

Baseado no livro homônimo que faz parte de uma série de oito livros escritos por Akif Pirinçci, o qual também atua como um dos roteiristas desta obra, "Felidae" é narrado pelo gato Francis, que conta sua própria história ao se mudar para um novo bairro. Seu dono, Gustav, é especialista em arqueologia egípcia, mas escreve romances baratos pra pagar as contas. Sempre que a situação piora, ambos se mudam para uma nova casa, o que Francis detesta. Apesar de gostar de seu dono, Francis o chama pela alcunha nada gentil de "amigo mentalmente retardado". E a julgar pela nova moradia escolhida por Gustav, um verdadeiro lixo e fedendo horrores, talvez Francis tenha toda a razão em chamá-lo assim.

Curioso e atento, Francis começa a explorar o ambiente, quando vê um gato parrudo e sem um dos olhos observando algo no quintal... um gato preto morto, com a garganta aberta. Bluebeard, o tal gato parrudo, diz a Francis que é o 4º gato morto na região nos últimos dias, e tem certeza que a culpa é dos "abridores de lata", apelido dado por ele aos seres humanos. Francis discorda, pois o pescoço da vítima não foi cortado mas, sim, dilacerado. Como os assassinatos não param, ele e Bluebeard começam a investigar a fundo o que está acontecendo, e se veem envolvidos numa trama ligada a fanatismo religioso, preconceito, eugenia, desejos sexuais e crueldade dos seres humanos em relação a animais de laboratório.

O orçamento generoso usado na produção de "Felidae" transparece em cada segundo na tela. Apesar de aparecerem alguns humanos na tela de vez em quando, a maior parte dos personagens realmente são gatos. O desenho de Paul Bolger transmite muito bem a personalidade de cada personagem, do olhar perscrutante e inteligente de Francis à expressão simplória, sincera e até um pouco feroz de Bluebeard. A animação propriamente dita é primorosa, mesmo nas cenas mais agitadas de ação, com tomadas de câmera inventivas e uma atenção impressionante aos detalhes de movimentação dos gatos - quem curte felinos ficará encantado com esta característica em especial. Por se tratar de uma animação com temática mais séria, que remete aos filmes "noir" dos anos 30, o uso de luz e sombra é crucial para se passar a sensação de perigo constante à espreita, e a equipe de animação conseguiu isto com louvor. A qualidade geral é comparável às melhores animações de Don Bluth (Fievel, A Ratinha Valente), o que não é pouca coisa.


Ao longo da narrativa, os sonhos de Francis são fundamentais para desvendar os crimes que estão ocorrendo - é como se o subconsciente dele usasse as informações absorvidas conscientemente ao longo do dia e tentasse interpretar tudo aquilo de forma abstrata e subjetiva. E estes sonhos são um capítulo à parte, verdadeiras viagens psicodélicas que lembram muito as fantásticas animações de Gerald Scarfe em "The Wall".

Um detalhe muito legal é que apesar dos gatos conversarem entre si, sendo que alguns conseguem até ler livros (como o próprio Francis), eles não falam com os humanos e continuam se comportando como gatos comuns. Por exemplo, se a tensão está muito grande e é preciso espairecer, nada melhor do que caçar alguns ratos e comê-los ali mesmo, sem piedade, cravando unhas e dentes na carne crua dos roedores.

Mostrando que não é, nem de longe, uma animação indicada para crianças, "Felidae" possui cenas muito pesadas, com direito a vísceras expostas, cabeças cortadas, torturas terríveis em laboratório - destaque para um dos sonhos de Felidae, com imagens tão chocantes que mais parecem um Holocausto felino. Além disto, há algumas gravuras explícitas do Kama Sutra emolduradas na parede de uma mansão e, ainda, uma cena de sexo não-explícita entre dois felinos. Portanto, papais e mamães, nada de mostrarem este lindo desenho de gatinhos pra sua prole, se não quiserem causar um trauma daqueles nas crianças. E amantes de gatos e animais em geral, preparem o coração, pois a coisa aqui é de tirar o sono.

Se tem uma coisa que decepciona um pouco em "Felidae", por incrível que pareça, é sua história. Não me entendam mal: o roteiro faz tudo direitinho, torna a obra interessante, dando a ela um ritmo narrativo invejável. O problema é que a trama propriamente dita, no fim das contas, é muito "feijão-com-arroz": tem toda uma teoria envolvendo Mendel e a seleção genética por trás dos assassinatos, uma fachada religiosa para ocultar as verdadeiras motivações do assassino, mas qualquer um que já tenha lido alguns romances policiais ou assistido filmes do gênero conseguirá adivinhar o desenrolar dos fatos e o desfecho do caso praticamente na metade do filme. Não é uma história ruim: apenas uma história policial comum. E ainda tem um dos clichês mais batidos do "Universo dos Clichês": um computador que precisa ser acessado com urgência e que possui uma senha de proteção absolutamente ridícula, aff...

Muita gente não gosta de "Felidae" por considerarem-no uma obra apelativa, que usa e abusa de imagens fortes e de violência contra animais para contar uma história simples. Pessoalmente, isto não me incomodou nem um pouco, até mesmo porque eu já sabia o que esperar de "Felidae" neste aspecto. Acho até que a história abre o olho do espectador para as crueldades feitas em nome da ciência e da religião, e as imagens chocantes ajudam a passar a mensagem com mais propriedade.



Com personagens excelentes, incluindo um vilão convincente e com motivações justas para o que faz, e uma qualidade técnica irrepreensível em todos os aspectos, "Felidae" é uma pequena jóia do mundo da animação, infelizmente pouco conhecida no Brasil, apesar de ter sido lançada por aqui em VHS, com o nome "Felidae - O Gato Detetive".


Marcelo Reis