OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 24/02/2017
Ano: 2012
Diretor: Keiichi Satou
Estúdio: Toei Animation
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 75 min
Gênero: Drama / Histórico
O "cel-shading", a técnica de dar um visual 2D a um ambiente totalmente 3D, é uma faca de dois gumes. Quando a equipe de animação sabe o que faz, como no caso de "Kakurenbo" ou "Freedom", o resultado é impressionante. Por outro lado, uma obra como "Norageki" mostra claramente como o mau uso do "cel-shading" pode gerar uma animação sem vida, que não passa a menor emoção. "Asura", animação produzida pela Toei Animation em 2012, eleva o uso do "cel-shading" em animes a um outro patamar, e talvez passe a ser o ponto de referência para futuras animações usando esta técnica.
A fome e a seca assolam uma região do Japão feudal. Não há água nem comida para todos, a desolação e a morte imperam pra todo lado. Em meio a uma situação tão desesperadora, as pessoas fazem coisas abomináveis para sobreviver. E é neste ambiente terrível que uma mulher dá à luz a uma criança, dentro de um templo budista. No início, o instinto maternal fala mais alto, e a mulher faz de tudo para garantir a sobrevivência do filho. Mas com o passar o tempo, a fome grita, e até seus entes queridos começam a ser encarados apenas como um prato de comida. E o impensável acontece.
8 anos depois, a situação continua terrível em função de outra seca avassaladora. Uma criança de aparência animalesca, com caninos aguçados e que se comporta como um cão raivoso, mata qualquer um sem piedade, pulando diretamente na jugular de suas vítimas, para saciar sua fome de carne e de sangue. Um encontro fortuito desta fera indomável com um monge budista é o início da trajetória desta criança em busca de sua própria humanidade, perdida após a tragédia indescritível pela qual passou. O monge lhe dá um nome, Asura, em alusão aos semideuses poderosos presentes no Hinduísmo e no Budismo, e que podem ser bons ou ruins, dependendo do caminho que seguem. Resta saber que caminho escolherá seguir este Asura de carne e osso, especialmente frente às tribulações que aparecerão ao longo de sua jornada.
"Asura" tem um dos inícios mais impressionantes que já presenciei num anime. Sempre em meio a um visual sombrio, e embalado por uma trilha sonora sinfônica imponente, com muitas seções de cordas em "stacattos", "Asura" não dá tréguas ao espectador, com uma sucessão de cenas fortíssimas mas sem apelações, todas com o intuito de mostrar sem rodeios todo o horror de se viver em meio à fome absoluta. Baseado no polêmico mangá de George Akiyama, que chegou inclusive a ser banido em partes do Japão, "Asura" segue à risca o conteúdo da obra que lhe deu origem, com as mesmas cenas de canibalismo, nudez e violência que causaram furor na década de 70, quando o mangá foi publicado.
Não dá pra falar de "Asura" sem elogiar novamente a maravilha visual que é este anime. Se alguém ainda tinha dúvidas de que um "cel-shading" bem utilizado poderia resultar num anime visualmente esplendoroso, "Asura" é a prova definitiva de que isto é possível. Desde os cenários detalhados até os personagens animados com uma riqueza incrível de detalhes, o que mais impressiona na animação de "Asura" é a naturalidade presente em toda a obra. Em filmes "live-action", por exemplo, os efeitos visuais mais incríveis são justamente aqueles que você não percebe que são efeitos, e é isto o que acontece em Asura: você sabe que aquilo ali é 3D, mas não há aquela sensação ruim de personagens com movimentos meio robotizados ou cenários que se movimentam com artificialidade. Méritos totais ao diretor de animação Shuichi Kaneko (Freedom, Karas) e à sua equipe por este trabalho brilhante.
A jornada de Asura é comovente, pois vemos que dentro daquela fera existe um ser humano sensível, que carrega uma dor imensa dentro de si, sempre com lembranças vívidas da tragédia que enfrentou. Asura recebe o auxílio não apenas do monge mas, principalmente, da bela e bondosa Wakasa, que de certo modo exerce a figura da mãe amorosa que Asura nunca teve. O amor, o carinho e a atenção podem fazer toda a diferença no comportamento do garoto. Mas seu lado animal, alimentado durante 8 anos de intenso ódio por tudo o que é vivo, está sempre à espreita... e a tragédia, como uma bomba-relógio, parece apenas esperar o momento certo para explodir.
Um fato interessante em "Asura" é que justamente o garoto-fera é aquele com o coração mais sincero de todos. É nas horas mais difíceis que o verdadeiro eu aparece, e enquanto a população de pessoas ditas normais se transforma em hordas de zumbis, Asura é o único que continua fiel aos seus sentimentos até o fim.
Bom, a julgar pela resenha até agora, "Asura" deveria ser o melhor anime de todos os tempos, né? Infelizmente, como tem acontecido com cada vez mais frequência, roteiristas e diretores parecem ter desaprendido a segurar as rédeas, apelando para o dramalhão absurdo, as gritarias histéricas e os comportamentos estúpidos de certos personagens. Se a intenção era emocionar o espectador, o tiro saiu pela culatra com muita força. E algo me deixou com a pulga atrás da orelha: se o monge tivesse acolhido Asura pra valer, como parecia ser sua intenção a princípio, nenhuma das tragédias subsequentes teria acontecido.
"Asura" começa de forma incrível, com um ritmo excelente, momentos realmente memoráveis e um visual estonteante, sendo por isto um anime extremamente recomendado. Mas apresenta problemas sérios rumo ao final que prejudicam sobremaneira o conjunto, o que é uma pena, pois tinha todo o potencial para ser uma obra-prima absoluta.
Marcelo Reis