sexta-feira, maio 05, 2017

Summer Wars (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 05/05/2017

Ano: 2009
Diretor: Mamoru Hosoda
Estúdio: Madhouse
País: Japão
Duração: 114 min
Gênero: Aventura / Comédia / Drama / Sci-Fi



Logo após o sucesso estrondoso de "Toki o Kakeru Shoujo", era grande a expectativa para "Summer Wars", obra seguinte do diretor Mamoru Hosoda e baseada numa história original de sua autoria. Reunindo grande parte da equipe envolvida em "Toki Kake", como a roteirista Satoko Okudera e o desenhista de personagens Yoshiyuki Sadamoto, e com produção novamente a cargo da Madhouse, "Summer Wars" parecia extremamente promissor no papel... mas seria capaz de rivalizar com a quase perfeição atingida em "Toki Kake"?

OZ é a rede social mais popular do mundo. Acessível por computadores, celulares ou TV, o mundo virtual de OZ replica tudo o que existe no mundo real. Avatares permitem que o usuário tenha a aparência virtual que quiser, num mundo alegre e interativo onde se pode ter tudo. Governos e grandes empresas possuem representações em OZ, e cada vez mais as coisas no mundo real são afetadas e controladas pelo que ali acontece. Para manter a ordem e a segurança, além dos espíritos-guardiões de OZ chamados de John & Yoko, existem vários funcionários responsáveis pela manutenção constante da rede.

Os amigos Kenji e Takashi, estudantes do Ensino Médio no Colégio Kuonji, trabalham meio horário no mais baixo escalão de manutenção de OZ. Certo dia, durante o expediente, pinta a chance de fazerem um "bico" nas férias: Natsuki Shinohara, a garota mais popular da escola, precisa que alguém a acompanhe até sua cidade natal, Ueda, em Nagano, para a comemoração do aniversário de 90 anos da avó da garota... mas há apenas uma vaga. Kenji é selecionado, mas nunca poderia imaginar que aqueles quatro dias de viagem aparentemente tranquilos se transformariam numa aventura ensandecida, na qual ele estaria diretamente envolvido em eventos que aproximariam como nunca o mundo virtual do real, colocando em risco a sociedade e o mundo como os conhecemos.

"Summer Wars" já começa de forma arrasadora, ao mergulhar de cabeça dentro do mundo de OZ. O visual psicodélico com cores chapadas lembram muito o estilo de "Superflat Monogram", curta-metragem dirigido pelo próprio Hosoda, e a dimensão gigantesca daquele ambiente dá uma idéia muito clara da penetração daquela rede em todos os cantos do mundo. A atenção dada à necessidade de se mostrar um mundo virtual convincente e impactante foi grande a ponto da Madhouse praticamente usar uma equipe à parte apenas na criação deste universo.

É interessante notar como "Summer Wars" foi profético ao mostrar o surgimento de uma rede social dominante sobre todas as outras. Este artigo em particular - http://www.tracto.com.br/qual-rede-social-e-mais-usada-no-mundo/ - demonstra como o Facebook virou realmente a rede dominante num espaço de tempo de apenas 3 anos. E muita coisa já mudou de lá pra cá, em especial com a forte prevalência também do Twitter e do Whatsapp entre a população.

Mamoru Hosoda conseguiu captar muito bem todo o conceito ligado às redes sociais, que geram um mundo ao mesmo tempo paralelo e interligado à realidade em que vivemos. Se por um lado é muito bom reencontrarmos amigos distantes, conhecermos pessoas novas e divulgarmos projetos pessoais com mais eficiência, existe também o problema dos "trolls", do bullying virtual, de reputações destruídas em segundos. E em relação à sociedade informatizada como um todo, há ainda o risco nada desprezível de problemas no mundo virtual causarem problemas muito reais no dia-a-dia das pessoas: se a tecnologia falha, é quase como se voltássemos à idade da pedra. E esta possibilidade de gerar caos e anarquia é um prato cheio e tentador para os terroristas virtuais.

Lendo tudo isto, pode-se ter a impressão de que "Summer Wars" é um anime que pega pesado em jargões tecnológicos, na linha de "Ghost in the Shell", mas é justamente o contrário. "Summer Wars" é uma obra de narrativa ligeira, com um excelente equilibrio entre humor, ação, drama e comédia. E apesar de tudo o que se passa em OZ ser fundamental no desenrolar do enredo, o que acontece no mundo real é igualmente importante e divertido, em grande parte graças ao sensacional clã Jinnouchi.

Explicando melhor e indo à parte mais humana do anime. A bisavó de Natsuki, Sakae, é a matriarca do clã Jinnouchi, descendente de uma linhagem de samurais que remonta à era Tokugawa. Os homens da família lutaram várias guerras para manter território, tendo inclusive enfrentado e vencido o exército bem mais poderoso de Tokugawa. O respeito ganho em função disto permitiu que o clã Jinnouchi tivesse excelentes relações com os mais altos escalões do governo japonês e dos grandes conglomerados do Japão. Mas não é nisto que o coitado do Kenji pensa ao chegar na enorme fortaleza dos Jinnouchi, vendo aquela família imensa, barulhenta e curiosa pra saber quem é aquele rapaz que acompanha Natsuki, com direito a perguntas indiscretas e comentários pra lá de indecorosos.

"Summer Wars" possui momentos hilários, até mesmo com o uso de SD (Super Deform), e apesar de manter este tom leve ao longo de toda a narrativa, aos poucos vão sendo adicionados detalhes que tornam o enredo realmente tenso e emocionante rumo ao final. Há alguns planos visuais e transições incríveis, com destaque absoluto para a cena em que a inteligência artificial que começa a dominar OZ assume proporções assustadoras: tudo flui com a mais absoluta perfeição, e eu só conseguia pensar em como deve ter sido incrível ver esta cena em especial no cinema.

Os personagens são ao mesmo tempo um ponto forte e fraco em "Summer Wars". Não há o que reclamar deles em termos visuais, já que o desenho de Yoshiyuki Sadamoto, com seus traços simples, mas extremamente expressivos e bem animados, é sempre uma delícia de se ver. E não dá pra reclamar também da personalidade de cada um, já que todos são plausíveis, importantes na história e bem delineados. O problema é que não há aquele personagem marcante que fica na memória. Falar em "Akira" é lembrar de Kaneda e Tetsuo; pensou em "Berserk", e já lembramos de Guts, Griffith e Caska; "DBZ" traz imediatamente à mente Goku, Gohan, Vegeta, Trunks, entre outros. "Summer Wars" termina, você curte o que viu, mas não se lembra particularmente de nenhum personagem. Se pensarmos em "Toki Kake", um dos motivos para o anime ser tão incrível e marcante é porque nos envolvemos profundamente com a história de Makoto, o que não acontece em "Summer Wars".

Outro detalhe que incomoda um pouco é o fato de absolutamente tudo na história estar direta ou indiretamente ligado ao clã Jinnouchi. Esta já seria uma situação bem implausível caso os eventos estivessem ligados apenas ao Japão, mas em se tratando de problemas graves em escala global, é realmente difícil de engolir que a salvação do planeta esteja nas mãos de uma única família, por mais influente que ela seja.



"Summer Wars" tem algo que lembra "Jogos de Guerra", de John Badham, mas com uma abordagem muito mais leve. É uma animação que reflete bem a época em que vivemos, em que os "nerds" outrora desprezados agora ocupam posição de destaque nos mais variados campos. Serve ainda de alerta para o risco de se deixar tantas coisas vitais sujeitas a ataques via rede: basta ver o estrago causado pelo vírus Stuxnet nas centrais nucleares iranianas. Mas, acima de tudo, "Summer Wars" é um anime divertido e delicioso de se ver, mais uma excelente obra no currículo de Mamoru Hosoda, que caminha a passos largos para se tornar um dos grandes nomes da animação japonesa.


Marcelo Reis


segunda-feira, abril 24, 2017

Vidas ao Vento (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 24/04/2017

Alternativos: The Wind Rises, Kaze Tachinu
Ano: 2013
Diretor: Hayao Miyazaki
Estúdio: Studio Ghibli
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 126 min
Gênero: Drama / Romance / Histórico



Acredito que esta será uma das resenhas mais difíceis de escrever, pelos mais variados motivos. Primeiro, porque apesar das declarações de aposentadoria de Hayao Miyazaki serem algo quase folclórico - primeiro, após dirigir "Princesa Mononoke", e depois, após terminar "A Viagem de Chihiro" - tudo leva a crer que "Vidas ao Vento" talvez seja realmente seu último filme. Se bem que esta matéria em inglês  já desmente tudo também, e voltamos à estaca zero... eita, vida complexa!

Outro motivo que dificulta sobremaneira a elaboração deste texto é o personagem principal desta obra, Jiro Hoshikori, engenheiro-chefe responsável pela criação de vários caças japoneses usados na 2ª Guerra Mundial, em especial os lendários Mitsubishi A6M Zero, que causaram enormes estragos nas tropas aliadas, além de serem tristemente famosos ao final da Guerra por terem sido usados nas operações dos pilotos "kamikazes". Houve muitos protestos ao longo da produção deste anime e após o seu lançamento, criticando Miyazaki e o Ghibli por retratarem alguém que, na opinião de muitas pessoas, deveria ser considerado um criminoso de guerra, já que suas criações causaram muito sofrimento, destruição e mortes, inclusive entre os próprios japoneses.

Nem comecei a resenha pra valer, e ainda preciso falar do 3º motivo de muita controvérsia em relação a "Vidas ao Vento": as licenças poéticas e artísticas exageradas em relação à vida real de Jiro Hoshikori. Falarei mais sobre isto ao longo da resenha, mas basta dizer que alguns eventos cruciais e super emocionantes da história, na verdade, nunca aconteceram. Quando parte da força destes eventos está justamente no fato de teoricamente terem acontecido na vida real, fica uma sensação meio desagradável de manipulação emocional descarada.

Enfim, como já foi mencionado acima, "Vidas ao Vento" é um relato ficcional da vida de Hoshikori, que inicialmente sonhava em ser piloto, mas nunca poderia conseguir isto em função de sua forte miopia. Apaixonado por aviões desde criança, Hoshikori lia revistas em inglês sobre aviação, usando o dicionário de seu irmão para conseguir entender o que estava escrito ali. Seu ídolo maior era Giovanni Caproni, um projetista de aviões italiano com o qual sonhava frequentemente e que agia, em seus sonhos, como um mentor espiritual do "jovem japonês".

A narrativa acompanha várias etapas da vida de Hoshikori, desde seu período de estudos como engenheiro aeronáutico na Universidade Imperial de Tóquio, passando pelo acidente de trem sofrido durante o impressionante terremoto de Kantô em 1923 que arrasou Tóquio, sua ascensão meteórica na indústria aeronáutica japonesa e todo o processo gradativo que culminou na criação de sua obra-prima, o famoso caça Zero. Considerado um verdadeiro gênio, Hoshikori possuía algumas características que, hoje em dia, provavelmente o colocariam dentro do espectro autista: interesse extremo por determinado assunto, capacidade incrível de concentração, um tom de voz meio monotônico e sem expressão, um certo desleixo com as obrigações sociais, entre outras coisas. Hideaki Anno, diretor de Evangelion, ficou a cargo da dublagem de Horikoshi, e apesar de muita gente ter execrado o seu trabalho, confesso ter gostado bastante do resultado: sua voz inexpressiva se encaixou como um luva na personalidade do protagonista.

Quem está acostumado ao estilo mais fantástico das obras de Miyazaki provavelmente estranhará a atmosfera totalmente realista de "Vidas ao Vento", além de seu ritmo lento. Os momentos de fantasia típicos de Miyazaki aparecem com força total nos sonhos de Hoshikori, e por estarem sempre ligados a aviões e vôos deslumbrantes, nos fazem lembrar imediatamente de grandes cenas aéreas em obras como "Laputa", "Nausicaä" e especialmente "Porco Rosso". Uma curiosidade: um dos aviões criados por Caproni chamava-se Ca.309 Ghibli, e certamente não foi à toa que Miyazaki escolheu este projetista como "mentor" de Hoshikori.


Mesmo em meio a tantas obras visualmente impecáveis do Ghibli, "Vidas ao Vento" se destaca como uma das mais impressionantes. Como em outras animações do estúdio, a atenção aos detalhes mais sutis de movimentação dos personagens beira a obsessão, e as cenas de vôo oferecem momentos de pura poesia visual. Mas nada se compara à estupenda cena do terremoto de Kantô, especialmente pelo contraste com a tranquilidade retratada poucos momentos antes, durante a viagem de trem, quando Horikoshi conhece Naoko Satomi, sobre a qual falarei mais à frente. Toda a sequência é um primor de execução e direção, e apesar do terremoto propriamente dito ser bem rápido, a tensão só aumenta em função do perigo iminente, resultante dos incêndios galopantes que se alastraram por Tóquio e Yokohama. Vale lembrar que mais de 140 mil pessoas morreram à época, especialmente por causa dos incêndios, desabamentos e de um "tsunami" que varreu a região.

Muitas vezes os tradutores arruínam o título de obras ao traduzi-las para o idioma local, mas tenho que admitir que "Vidas ao Vento" foi uma jogada de mestre, pois retrata perfeitamente o que se passa na obra. E o vento é um elemento crucial neste anime, estando sempre presente nos momentos-chave da narrativa, como se realmente brincasse e jogasse com aquelas vidas em cena, tão pequenas e, ao mesmo tempo, tão belas e humanas.

"Vidas ao Vento" é um filme para pessoas pacientes, que certamente se sentirão recompensadas com a bela jornada de Jiro Hoshikori, especialmente na área pessoal, e é aqui que duas das controvérsias citadas no início marcam presença.

Grande parte das críticas a "Vidas ao Vento" diz respeito à criação de um filme que homenageia uma pessoa responsável por máquinas destruidoras, retratando-o de forma muito positiva, quase hagiográfica. De certo modo, concordo parcialmente com estas críticas, já que Jiro Hoshikori é mostrado sempre como um pacifista, que gostaria apenas de criar aviões de passeio, mas cujo amor incondicional por estas máquinas voadoras o levou, de certo modo, a fazer um pacto com o diabo. Por mais que Horikoshi não quisesse tomar parte naquela guerra, é difícil imaginar que ele não soubesse o estrago e o sofrimento que suas criações causariam.

Tendo dito isto, não concordo com as críticas feitas à criação do filme em si. Seria como protestar contra a criação de um filme baseado na vida de J. Robert Oppenheimer por ter sido o "pai" da bomba atômica, ou de Andrei Sakharov por ter sido o pai da bomba H soviética, como se estas pessoas e suas criações se fundissem em uma coisa só e não houvesse toda uma vida, toda uma existência complexa ligada a cada uma delas. Caramba, se até Adolf Hitler foi retratado de forma mais humana em "A Queda", por que Jiro Horikoshi não mereceria esta chance? Humanizar um personagem histórico, por mais execrável que tenha sido, não significa minimizar sua responsabilidade mas, sim, mostrar que por trás daquela "persona", havia um ser humano que, pelos mais variados motivos, seguiu um rumo que a grande maioria talvez não seguisse.

A outra controvérsia que, para mim, prejudicou bem mais a apreciação final de "Vidas ao Vento", foi a introdução e/ou alteração de vários eventos em uma obra que, teoricamente, deveria ser menos ficcional e mais biográfica. Não vou entrar em muitos detalhes para evitar spoilers - e recomendo a leitura deste artigo em inglês para maiores detalhes: http://the-artifice.com/the-wind-rises-2013-fact-fiction/ - mas quando se sabe que todo e qualquer evento relacionado à personagem Naoko Satomi nunca aconteceu na vida real, sendo que ela sequer existiu, grande parte da emoção se esvai. Não acho obrigatório que uma obra baseada na realidade siga à risca o que aconteceu, mas no caso de "Vidas ao Vento", o que acontece entre Hoshikori e Satomi se torna tão pungente e emocionante justamente porque ficamos a imaginar como foi passar por tudo aqui na vida real. Se "Vidas ao Vento" fosse uma obra 100% ficcional, eu realmente não diria nada, mas sendo teoricamente uma biografia, senti que todos estes eventos foram inseridos apenas para manipular emocionalmente o espectador, sem a menor cerimônia.



Ainda assim, considero "Vidas ao Vento" uma das melhores obras de Miyazaki. Sei que muita gente se decepcionou, achando o anime maçante, enfadonho e piegas, mas pelo menos pra mim, foi muito bom ver uma obra um pouco mais realista de Miyazaki. "Princesa Mononoke" ainda é meu xodó máximo no universo de Miyazaki, mas "Vidas ao Vento" vem ali, coladinho, disputando o 2º lugar com "A Viagem de Chihiro" e "Meu Amigo Totoro".


Marcelo Reis


 

segunda-feira, abril 10, 2017

Macskafogó (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 10/04/2017

Alternativos: Cat City, Cat Catcher
Ano: 1986
Diretor: Béla Ternovszky
Estúdio: Pannónia Filmstúdió
País: Hungria
Episódios: 1
Duração: 92 min
Gênero: Aventura / Comédia



Este longa-metragem húngaro foi produzido em 1986, num período em que a Guerra Fria ainda estava em curso. Como a Hungria fazia parte da Cortina de Ferro - em outras palavras, os países do bloco comunista da Europa sob controle soviético - ainda havia muita censura e dificuldades financeiras em todos os aspectos. É uma surpresa agradável ver uma animação criada em tempos tão difíceis com tamanha qualidade técnica e com uma narrativa ágil, bem próxima dos filmes de ação produzidos no Ocidente. Até hoje, "Macskafogó" é uma das animações mais cultuadas no Leste Europeu, tendo sido inclusive um enorme sucesso de bilheteria na antiga União Soviética.

Pegando o próprio texto da introdução do filme, que imita a abertura de "Guerra nas Estrelas": "No ano 80 AMM (Após Mickey Mouse), os ratos do Planeta X estão ameaçados pela humilhação e extinção total. Gatos sedentos de sangue formam gangues multinacionais bem organizadas e equipadas, violando a lei e a ordem, ignorando convenções históricas entre gatos e ratos, buscando a aniquilação completa da raça dos ratos. Mas à beira da destruição completa, quando os ratos mais sábios já pensavam em abandonar o planeta, nasce uma nova esperança..."

De cara, chama a atenção a ótima qualidade de animação em "Macskafogó". Relembrando: estamos falando de uma animação feita em 1986, em meio à verdadeira penúria pela qual passavam os países do Leste Europeu. Por isto não podemos compará-lo visualmente a outras animações lançadas no mesmo ano, como "Laputa", "Fievel - Um Conto Americano" ou "Project A-KO", já que a diferença de orçamento é simplesmente brutal. Ainda assim, mesmo com cenários relativamente simples, "Macskafogó" possui um bom gosto visual que permeia toda a obra, além da animação propriamente dita ter uma qualidade simplesmente sensacional.

Zoltan Maros, desenhista de personagens, faz um trabalho impecável na caracterização dos gatos e ratos neste desenho, sem dúvida auxiliado pelo roteiro inspirado de József Nepp, uma vez que o próprio nome de vários personagens diz muito a respeito dos mesmos. Mr. Teufel, por exemplo - que significa "Sr. Diabo" em alemão - um manda-chuva da máfia dos gatos, é magro, alto, usa um tapa-olho do lado esquerdo e tem uma pata esquerda metálica que causa estragos em Safranek, seu subalterno imediato, sempre com um olhar assustado, postura encurvada e falando pelos cotovelos para tentar justificar seus atos. O Sr. Giovanni Gatto, líder máximo da máfia, é um gato branco, gordo, com aquela pinta esnobe de quem se acha intocável. E como esquecer de Schwartz, que como o nome em alemão indica, é um gato preto, líder dos malandros de rua, com um jeitão bem seboso e que se acha o "rei da cocada", tanto que faz questão de ser chamado de "von Schwartz", para dar aquela pinta de nobreza que nem de longe ele possui.

Do lado dos ratos, o destaque é sem dúvida Nick Grabowski. Um ex-membro da Intermouse, tudo o que Grabowski quer agora é viver isolado, meditar em meio a muito incenso, comer muita "junk food" e espalhar aos sete ventos que é a 13ª encarnação de Mickey Mouse. Grabowski tem aquela pinta blasé que lembra muito James Bond: é bom de briga, inteligente, não perde a cabeça nem nos momentos mais desesperadores, e realmente coloca os gatos no seu devido lugar.


"Macskafogó" pode ser dividido informalmente em três partes, pelo menos em relação à qualidade de cada uma. O primeiro 1/3 do filme é impecável, mostrando como os gatos querem realmente arrasar com os ratos, saqueando todos os seus bens, com atenção especial ao estoque de queijo. Como a maior parte está oculta em esconderijos subterrâneos inacessíveis, Mr. Teufel e Safranek bolam planos mirabolantes para terem acesso a este tesouro oculto. Por outro lado, a Intermouse não tem outra saída a não ser tirar Grabowski de sua aposentadoria, para que viaje a Póquio e descubra como o projeto secreto do Dr. Fushimisi pode ser a solução para o problema dos ratos.

Tudo flui maravilhosamente nesta parte, há sutilezas sensacionais no humor, como o charuto de Mr. Teufel em forma de rato, que perde o nariz ao ter a ponta cortada, ou quando Safranek diz algo que desagrada Mr. Teufel, e um laço de fumaça se forma em volta de seu pescoço. Mr. Teufel solta ainda a antológica frase "inferiores sempre devem amar seu chefe", momentos após ter praticamente desfigurado o pobre Safranek com sua mão robótica. E o auge chega quando somos apresentados a um vídeo promocional de "The 4 Gangsters", quatro ratos que se autoproclamam os maiores caçadores de ratos do Planeta X, mas não passam de um bando de enroladores e "posers"; me arrisco a dizer que este clipe talvez seja o momento mais inspirado de todo o filme.

Infelizmente, "Macskafogó" nunca volta a ter este mesmo nível de excelência. Seu terço do meio tem uma queda inacreditável na qualidade narrativa, focando-se quase completamente nos tais 4 Gângsteres, que se mostram personagens verdadeiramente insuportáveis, verborrágicos e burros. Aparece ainda um tal de Sargento Lusta Dick, cujas cenas são, na maior parte do tempo, totalmente idiotas e dispensáveis. E outra coisa incomoda muito: a inconsistência em relação a quem morre ou não na história. Em determinado momento, um acidente de avião causa a morte de praticamente todos a bordo; em outro momento, personagens num compartimento apertado recebem uma granada que explode na mão de um deles, e tudo o que acontece é ficarem levemente chamuscados. É como se o roteiro uma hora optasse em seguir um rumo mais realista, para no minuto seguinte virar uma verdadeira ode ao Coiote e ao Papa-Léguas.

A qualidade melhora bastante no terço final, com cenas de ação agitadas e bem-feitas, ainda que certas partes com alusões aos mexicanos e astecas sejam bobinhas e meio fora de lugar. E o final propriamente dito, sinceramente, foi uma bela de uma porcaria. A sensação que temos ao longo do filme é que tentaram deixá-lo mais infantil e engraçadinho rumo ao fim, e o resultado ficou uma coisa meio desconexa, com momentos tolos demais para uma animação mais séria, e outros um pouco pesados para uma animação mais infantil.



Claro que a questão cultural influencia muito, e talvez certas partes de humor funcionem melhor para os húngaros, mas apesar de ter gostado bastante de "Macskafogó", não o considero a obra-prima que tantas pessoas apregoam por aí. Tem momentos muito, muito bons, mas tem partes insuportáveis o suficiente para reduzir a satisfação geral que temos ao terminar de assisti-lo.


Marcelo Reis


 

sexta-feira, março 31, 2017

Hotori - Tada Saiwai o Koinegau (Especial)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 31/03/2017

Alternativos: Hotori - The Simple Wish for Joy
Ano: 2005
Diretor: Takashi Annou
Estúdio: Sunrise
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 40 min
Gênero: Drama / Sci-Fi



Entre 2002 a 2008, o canal japonês de TV a cabo Animax realizou o Animax Awards (ou Animax Taishou, em japonês), para premiar os melhores roteiros originais de animes criados por todo o Japão. O roteiro premiado em cada ano ganharia uma versão em anime produzida por um grande estúdio de animação japonês, e seria exibido no ano seguinte no próprio Animax. Maya Miyazaki foi a vencedora em 2004, com o roteiro "Hotori - Tada Saiwai o Koinegau", e sua versão animada, produzida pela Sunrise, estreou em 2005.

"Hotori" se passa em 2034, época em que a tecnologia utilizada em robôs evoluiu a ponto de existirem as chamadas "Fábricas de Personalidades". Nestas fábricas, é possível inserir aos poucos as memórias de uma pessoa já falecida em um robô de aparência humanóide perfeita para que ele possa, de certo modo, substituir o ente querido ausente e minimizar a dor e o sofrimento daqueles que continuam vivos.

Suzu é um robô que está sendo treinado para substituir Ryou Ogura, um garoto que morreu devido a uma doença incurável. A enfermeira Usui, responsável por inserir as memórias em Suzu e treiná-lo, está satisfeita com o progresso do "pupilo". O garoto é capaz de se emocionar com coisas que gosta, como desenhos animados, tem movimentos corporais naturais, mas ainda faltam arestas a ser aparadas: ele ainda tem uma lógica um pouco rígida, com dificuldades para entender certas sutilezas da comunicação, mas nada muito sério.

Certo dia, Suzu vê aberta a porta de uma mansão vizinha à Fábrica de Personalidade, e lá dentro conhece Hotori. Filha do Prof. Shimizu, pesquisador-chefe da Fábrica, Hotori sofre de uma doença também incurável que é o oposto da situação de Suzu: enquanto o robô recebe novas lembranças diariamente, a garota perde um pouco de sua memória a cada dia: do nada, sem aviso prévio, ela tem uma crise, se desliga e, ao voltar, não se lembra do que aconteceu momentos antes. Irremediavelmente, chegará o dia em que Hotori não se lembrará de mais nada.


Por se tratar de um especial de TV, "Hotori" possui uma animação simples, mas eficiente. O desenho de personagens é expressivo, com olhos gigantescos que ocupam 1/3 da cara de Suzu e Hotori, mas relativamente genérico, especialmente em relação aos personagens secundários. A trilha sonora possui belos temas em piano e violão, às vezes com algumas seções de violino, que cumprem bem o seu papel sem serem muito intrusivos ou excessivamente dramáticos.

O roteiro basicamente gira em torno das situações opostas de Hotori e Suzu, e os dramas enfrentados não só por cada um, mas também pelas pessoas à sua volta. Hotori sabe que sua situação é irreversível, tem medo de não ser mais ela mesma caso perca todas as lembranças do passado. Seu irmão mais velho, Tatsuki, sofre com a degeneração gradual da irmã, e pressiona o pai para que ele transfira as memórias de Hotori para um robô, como os pais de Ryou Ogura fizeram com Suzu. O pai poderia fazer isto, mas não quer ter apenas uma imitação de sua filha ao seu lado. Suzu, por outro lado, começa a ter dificuldades em saber quem ele realmente é, não apenas por receber diariamente novas memórias de Ryou mas, principalmente, porque estas memórias começam a se misturar com aquelas que ele próprio criou ao longo de sua "vida". Onde começa Suzu e onde termina Ryou?

O problema principal de "Hotori" é sua curta duração: não dá pra desenvolver bem a história em apenas 40 min. Situações que deveriam evoluir de forma mais cadenciada acontecem muito rapidamente, impedindo que transmitam a emoção desejada ao espectador. Para piorar, enquanto a primeira metade possui um ritmo bem controlado e instigante, a segunda metade descamba para o dramalhão, tentando praticamente nos empurrar goela abaixo que tudo aquilo é triste demais e que temos que chorar de qualquer maneira.

Como acontece em muitos animes, os robôs são excessivamente humanizados: quando isto acontece, é muito difícil enxergarmos ali um robô que tenta entender quem ele é, e o que significa ser humano, pois ele já é humano demais. Outras obras conseguiram abordar esta questão com muito mais propriedade (Ghost in the Shell, The Time of Eve, etc). E o mesmo acontece com o lance da perda de memória de Hotori: o espectador sabe do problema muito mais porque a garota repete isto sem parar, do que por realmente sentir o peso e a dor de tudo aquilo. Comparado a outros animes que tratam de um tema similar (Kaiba, ef - a tale of memories), "Hotori" perde feio.



Não dá pra dizer que "Hotori" não é tão bom por contar com um diretor ruim ou inexperiente no comando, tendo em vista que Takashi Annou dirigiu nada menos que o excepcional "Maison Ikkoku". E dificilmente o roteiro de Maya Miyazaki seria premiado no "Animax Awards" em meio a tantos inscritos se fosse realmente fraco. Mas alguma coisa definitivamente se perdeu no meio do caminho, transformando uma obra com muito potencial em um anime apenas mediano.


Marcelo Reis