sábado, dezembro 27, 2014

Nana Toshi Monogatari (OVA)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 27/12/2014

Alternativos: Nana Toshi Monogatari ~ Hokkyokukai Sensen ~, Seven Cities Story ~ Arctic Front ~
Ano: 1994
Diretor: Mamoru Kanbe
Estúdio: Animate Film / Studio Junio / MOVIC
País: Japão
Episódios: 2
Duração: 30 min
Gênero: Ação / Drama / Sci-Fi / Guerra



Nem sempre a presença de nomes consagrados na equipe de produção é garantia de qualidade no produto final. Vamos citar alguns exemplos:

-O longa-metragem "Genma Taisen", também conhecido como "Harmageddon", foi produzido pela Madhouse e contou com Rintaro na direção, Katsuhiro Otomo como desenhista de personagens, e o lendário Shotaro Ishinomori (Cyborg 009, Kamen Rider) foi o criador do mangá original.

-"Garzey's Wing", uma série de 3 OVAs de aventura e fantasia da década de 90, foi criado, roteirizado e dirigido por ninguém menos que Yoshiyuki Tomino, a mente brilhante por trás de todo o universo Gundam.

-"Sword for Truth", longa-metragem sobre combates entre samurais e ninjas com alto teor de violência e cenas de sexo bem toscas, tinha em sua equipe nomes famosos como o diretor Osamu Dezaki (Ace o Nerae, Ashita no Joe), o diretor de arte Yukio Abe (Chirin no Suzu, Arashi no Yoru ni) e o "chara designer" Akio Sugino (Legend of the Galactic Heroes, The Fantastic Adventures of Unico).

Nada disto impediu que estas três animações se tornassem o horror supremo encarnado, animes tão ruins que quem os assistiu teve vontade de arrancar os olhos, furar os ouvidos e cometer "seppuku"... Tá bom, tem um pouco de exagero aí, mas chega a ser inacreditável que animes tão execráveis tenham sido criados por profissionais tão talentosos e criativos.

E onde "Nana Toshi Monogatari" se encaixa nesta historinha de abertura? Eu citei "Legend of the Galactic Heroes" agora há pouco -  para facilitar, chamarei-o de "LOGH" de agora em diante - e qualquer pessoa que já tenha assistido a esta incrível série de OVAs sabe que é um dos animes mais fantásticos já realizados, com um enredo complexo e personagens riquíssimos. Então, como não ficar empolgado com "Nana Toshi Monogatari", sabendo que foi baseado num romance de Yoshiki Tanaka, criador dos livros que deram origem a "LOGH"? E ainda contou com grandes nomes na equipe, como Mamoru Kanbe (Elfen Lied) na direção, e Katsumi Matsuda (Spriggan, Steamboy) como desenhista de personagens...

"Caramba, este anime só pode ser sensacional!"

Ahem... vamos segurar a empolgação, ser humano? Frase sábia do dia de Mestre Sloth: "Leia o início da resenha novamente, por favor, e aprenda com o passado." No papel, "Nana Toshi..." realmente tinha tudo para ser incrível, mas há tantas coisas erradas neste anime que fica até difícil começar. Enquanto concateno melhor as idéias neste cérebro de bicho-preguiça, vamos a um breve resumo da história.

No ano 2086, a humanidade viveu o pior pesadelo de sua história. O eixo da Terra girou 90 graus e, num espaço de 3 anos, aproximadamente 10 bilhões de pessoas morreram. Esta tragédia foi chamada de "Grande Queda". No entanto, 1 milhão de colonos que tinham se mudado para a Lua não morreram na "Grande Queda". Em 2088, foi estabelecido o Governo Mundial Pan-Humano.


Três anos depois, para reviver o planeta em ruínas, eles voltaram mais uma vez à superfície da Terra. Sete localizações foram escolhidas para a construção de cidades, de acordo com o clima, recursos naturais e estabilidade do solo. No entanto, enquanto construía estas cidades, o Governo Mundial Pan-Humano também criou um sistema chamado Olympos, com vida útil estimada em 200 anos, para controlar completamente a Terra. Se um objeto de massa e velocidade constantes atingisse ou ultrapasse 500m de altitude, o Sistema Olympos o destruiria imediatamente, usando canhões de laser na lua e satélites militares. E em 2136, o governo lunar perece em função de um vírus desconhecido, levado à Lua por um meteoro.

A história pra valer começa em 2190, quando uma frota naval da cidade de New Camelot faz um ataque surpresa a uma base militar da cidade de Aquilonia. Lideradas por Kenneth Guilford, estrategista considerado um verdadeiro gênio em combate, as tropas de New Camelot não têm dificuldades para tomar a base. Este incidente pode colocar em xeque todo o equilíbrio de forças entre as sete cidades, levando a uma guerra mundial aberta.

Do lado de Aquilonia, o líder Nicholas Bloom sabe que será difícil enfrentar o maior poderio militar de New Camelot. Ele conta com a ajuda de Ryu Wei, um homem calmo que adora cuidar de flores e só quer levar uma vida tranquila, mas que é um excepcional estrategista político. Enquanto Ryu Wei tenta forjar alianças com outras cidades, o Cap. Almarick Aswaer, outro gênio da estratégia em combate, coloca sua própria cabeça em risco ao entrar em choque com seus superiores militares em relação às futuras táticas de combate de Aquilonia.

"Nana Toshi Monogatari" começa extremamente promissor, com um traço excelente, tradicional, bem típico dos anos 90. O desenho mecânico é detalhado, em especial nos navios de combate, e a animação nas cenas de batalha é fantástica na maior parte do tempo. Por se tratar de um OVA, estas cenas são bem fortes, não em função da presença de sangue ou pedaços de corpos, mas pela devastação e quantidade de mortes que acontecem. Por outro lado, a animação fora das cenas de combate é bem simples, algumas vezes inexistente, com um certo abuso de imagens paradas ou repetição de sequências. Interessante também que todos os combates se realizam no mar e em terra, já que combates aéreos seriam imediatamente encerrados com a ativação do Sistema Olympos.

A trilha sonora é um negócio meio estranho. Os temas orquestrais são fortes, imponentes e muito bem produzidos, mas como em grande parte dos OVAs produzidos nos anos 90, há um abuso de temas sintetizados de qualidade duvidosa e produção pífia. Para piorar, a maioria das músicas não combina absolutamente em nada com o que se passa na tela. Pelo menos os efeitos sonoros são incríveis, ajudando a passar toda a sensação de destruição e terror em meio aos combates.

Levando-se em conta a qualidade incrível do enredo de "LOGH", é de se imaginar que o livro que deu origem a "Nana Toshi..." seja muito bom. Infelizmente, dois OVAs de 30min cada são insuficientes para que a história seja narrada da maneira adequada, mesmo que apenas um arco do enredo, o chamado "Front Ártico", seja retratado no anime. Por esta razão, há um abuso de diálogos expositivos, a narrativa é muito acelerada, os dados técnicos são praticamente vomitados na cabeça do espectador, que nem tem muito tempo de absorver o conteúdo adequadamente.

As intrigas e negociações políticas são bobas e confusas, a maioria dos personagens são totalmente caricatos, beirando a burrice completa em alguns casos. Não me lembro de ter visto militares e políticos tão idiotas como neste anime. E chega a ser risível considerar Guilford e Aswaer "gênios da estratégia", já que suas táticas de combate são mais do que previsíveis... se bem que com militares tão ineptos e acéfalos, até uma couve-flor seria considerada genial. Para quem já assistiu a animes com táticas de combate memoráveis, como "Zipang", "Seikai no Monshou / Seikai no Senki" e "LOGH", é muito triste ver uma obra supostamente séria com estratégias tão pueris.



Com pelo menos um momento realmente impressionante - o ataque de New Camelot a uma fortaleza de Aquilonia ao final do OVA 1 - "Nana Toshi Monogatari" tinha tudo para ser uma obra memorável. Ao final, acabou se mostrando um anime fraco e genérico, que vale por algumas cenas de combate, especialmente do OVA 1.


Marcelo Reis


 

terça-feira, dezembro 16, 2014

The Tibetan Dog (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 16/12/2014

Alternativos: Tibet Inu Monogatari: Kin'iro no Dao Jie
Ano: 2011
Diretor: Masayuki Kojima
Estúdio: Madhouse
País: China / Japão
Episódios: 1
Duração: 90 min
Gênero: Aventura / Drama / Mistério



Baseado no livro "Zàng'áo" (Tibetan Mastiff), best-seller chinês de autoria de Yang Zhi Jun, "The Tibetan Dog" é uma co-produção entre China e Japão. Sendo mais específico, o financiamento foi todo chinês (China Film Group Corporation), mas a produção propriamente dita é inteiramente japonesa, cortesia de nossa velha conhecida Madhouse. Os diálogos originais foram gravados em mandarim, o que dá um pouco mais de autenticidade à obra, uma vez que ela se passa no Tibete. Convenhamos, teria sido muito mais interessante se os diálogos fossem em tibetano, mas seria pedir demais, ainda mais sendo uma obra financiada pela China.

A história é narrada por um senhor de meia-idade, Tenzing, que conta fatos ocorridos em sua própria infância. Tenzing saiu da cidade de Xi'an aos 10 anos de idade, após o falecimento de sua mãe chinesa, e foi procurar seu pai, Lhakpa, no Tibete. Lhakpa é de origem tibetana, conheceu a mãe de Tenzing na Faculdade de Medicina, e após se formarem como médicos e se casarem, foram morar no Tibete, pois ele queria usar seus conhecimentos médicos para ajudar a população carente da região - por atendê-los de graça, Lhakpa ganha a vida como pastor de ovelhas. Mas a mãe de Tenzing não se adaptou ao ambiente e ao estilo de vida tibetano, e acabou indo embora e levando o garoto ainda bebê consigo. Por esta razão, Tenzing mal conheceu o pai.

Tenzing não tem motivos para comemorar. Perdeu a mãe que tanto amava, o pai recebeu-o em sua tenda de forma fria e distante, a adaptação aos costumes e ao ambiente tão diferentes não tem sido nada fácil e, pra piorar, os garotos da região praticam "bullying" com ele. Ainda que Sonam, amigo de seu pai, e o cãozinho Wala tentem ajudá-lo a se adaptar e curtir a nova vida, Tenzing sofre com a distância do pai, do qual guarda rancor por ele não ter ficado ao lado da mãe quando ela mais precisava de apoio. Mas a entrada em cena de um belo e desconhecido mastim tibetano, de pelagem espessa e dourada, pode mudar completamente a vida do garoto e, por tabela, de todos os habitantes da região.

"The Tibetan Dog" poderia ter se tornado uma animação melodramática ou excessivamente edificante mas, felizmente, há um ótimo equilíbrio entre drama, ação e até um pouco de suspense. A relação que surge entre Tenzing e o mastim dourado evolui com naturalidade, já que ambos são forasteiros naquela aldeia; os problemas de relacionamento entre pai e filho são retratados de forma realista - Tenzing quer aproximar-se e saber mais sobre seu passado, enquanto Lhakpa mantém distância, pois quer que o filho seja forte e independente; a dor de Tenzing neste duro processo de adaptação à nova realidade em meio ao luto pela morte da mãe é palpável e convincente, e a flauta que recebeu de presente da mãe aparece em um momento particularmente tocante do filme, representando muito bem o amor e compreensão que havia entre ambos.


Ainda que exista uma certa aura Disney aqui e ali no tocante à amizade entre Tenzing e o mastim tibetano, chamado pelo garoto de Doogee (ou Do-khyi em tibetano), e também em relação ao cãozinho Wala, que serve como alívio cômico em várias partes da animação, "The Tibetan Dog" possui um clima mais pesado e adulto. Pessoas e animais começam a aparecer mortos pela ação de um assassino misterioso, que parece matar pelo simples prazer de fazê-lo. Estas mortes levam a boatos sobre a existência de um demônio assassino, e como o mastim dourado surgiu na região mais ou menos no mesmo período, as suspeitas começam a cair sobre ele.

Além de Tenzing, Lhakpa e Doogee, outros personagens importantes são Medhram, bela aprendiz de Lhakpa que quer pegar as melhores características existentes nas medicinas ocidental e chinesa, atua como importante apoio emocional a Tenzing; Amala, uma velha trambiqueira que vende poções inúteis aos aldeões, se acha a dona de pedaço mas morre de medo de Lhakpa; Norbu, neto de Amala, nutre grande curiosidade por Tenzing desde sua chegada, participa a contragosto de uma sessão de "bullying" contra o garoto mas acaba tornando-se seu amigo; Gyalo, o implacável líder de um bando de ladrões da região, possui um trato de não-agressão mútua com os habitantes da aldeia, mas começa a perder a sanidade quando sente de perto a dor causada pelo "demônio assassino"; e Tering, ancião e líder espiritual da aldeia, possui grande ascendência moral sobre todos na região, inclusive sobre a gangue de Gyalo.

Ainda que Doogee seja o principal mastim tibetano nesta animação, a raça como um todo é fundamental na narrativa. Os mastins tibetanos são cães desconfiados, que custam a se abrir para outras pessoas. Fortíssimos, defendem rebanhos e pessoas, mas os machos disputam fortemente o território com embates violentos e sangrentos. Para sobreviver numa região tão inóspita, com ar rarefeito e mudanças climáticas radicais, só mesmo uma raça tão especial quanto esta. E a Madhouse fez um trabalho de animação brilhante para representá-la à altura, tendo inclusive um diretor de animação específico para os animais: um ótimo trabalho de Kazutaka Ozaki.

Se alguém notar semelhanças entre o desenho de personagens em "The Tibetan Dog" e obras como "Monster" e "Master Keaton", não é mera coincidência, ja que Naoki Urasawa é responsável por esta função nesta animação, ao lado de Shigeru Fujita, também presente nos animes de "Monster" e "Master Keaton". E as ligações com estas duas obras não param por aqui, já que o diretor Masayuki Kojima também dirigiu os dois animes supracitados. 

O traço de Urasawa, como sempre, é excepcional, com personagens de feições muito diferentes entre si e uma expressividade impressionante no olhar. Mas se alguém merece muito crédito pelo visual estonteante de "The Tibetan Dog", esta pessoa é Yuji Ikeda. O diretor de arte em obras visualmente incríveis como "Fushigi Yuugi" e "The Heroic Legend of Arslan" conseguiu retratar o Tibete em todo o seu esplendor, tanto nas cenas ensolaradas em meio às pradarias quanto nos momentos agoniantes entre os grandiosos picos do Himalaia. Tudo isto, aliado à bela trilha sonora de Shusei Murai (Silver Spoon 1 e 2) repleta de temas orquestrais e percussões típicas tibetanas, torna "The Tibetan Dog" um verdadeiro banquete sensorial.



Sinto uma certa tristeza ao saber que "The Tibetan Dog" foi um fracasso terrível de bilheteria na China - com um custo de aproximadamente US$9 milhões, mal arrecadou US$200 mil nos cinemas chineses. É uma animação de excelente qualidade técnica, com uma narrativa empolgante e nada piegas sobre amizade e amadurecimento, personagens realistas e bem desenvolvidos e um ótimo equilíbrio entre ação e drama.


Marcelo Reis


 

sexta-feira, dezembro 12, 2014

O Mundo dos Pequeninos (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 12/12/2014

Alternativos: Karigurashi no Arrietty, The Secret World of Arrietty, The Borrower Arrietty
Ano: 2010
Diretor: Hiromasa Yonebayashi
Estúdio: Studio Ghibli
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 95 min
Gênero: Aventura / Drama / Fantasia



Hiromasa Yonebayashi faz parte da equipe do Studio Ghibli desde 1997, quando atuou como intervalador em "Princesa Mononoke". Após vários anos exercendo as funções de intervalador, animador e diretor de animação em várias obras do Ghibli, Yonebayashi foi informado de que assumiria a cadeira de diretor em "Karigurashi no Arrietty". Além de ter sido o primeiro animador do Ghibli a exercer a função de diretor, Yonebayashi tornou-se a pessoa mais jovem a dirigir um anime do estúdio. Responsabilidade pouca é bobagem. :)

"Karigurashi no Arrietty", chamado no Brasil de "O Mundo dos Pequeninos", é baseado no livro "The Borrowers", da autora inglesa de livros infantis Mary Norton. Para quem quiser conferir o livro, ele foi lançado no Brasil pela Martins Editora com o nome "Os Pequeninos Borrowers".

Sho, um garoto de 12 anos, vai passar alguns dias na bucólica casa da tia-avó Sadako, pois encontra-se debilitado devido a uma doença crônica e precisa de alguns momentos de descanso em um local sossegado. Ao chegar, enquanto vagava pelos jardins da casa, Sho tem a nítida impressão de ter visto uma minúscula garotinha correndo no meio das plantas. Seria aquilo uma alucinação, ou realmente seria possível a existência de pessoas de proporções tão minúsculas?

A vista de Sho não lhe pregou nenhuma peça: ele realmente vira Arrietty, uma garota de 14 anos que mora com os pais Pod e Homily no subsolo da casa de Sadako. Eles fazem parte de uma raça chamada de "Colhedores", seres minúsculos que moram escondidos nas casas de seres humanos e pegam "emprestado" os utensílios e suprimentos de que precisam para sobreviver. Uma das principais regras de vida dos Colhedores diz que eles nunca podem ser vistos por um humano: caso isto aconteça, para sua própria segurança, devem procurar imediatamente uma nova casa.

Arrietty não percebeu que o garoto a notara, pois estava mais preocupada em voltar para casa em segurança enquanto fugia de Niya, o gato da tia-avó de Sho. Por esta razão, nenhum sinal de alerta chegou a ser ligado entre a família da garota. Mas com a curiosidade de Sho em tentar descobrir se os pequeninos existem mesmo, aliada à tentação de Arrietty em saber um pouco mais sobre aquele humano xereta, é apenas questão de tempo até que a situação comece a se complicar para todos os envolvidos. E quando se tem em casa alguém como Haru, uma empregada um tanto insólita, a história pode tomar rumos totalmente imprevisíveis.

Acredito que muitos que estão lendo esta resenha já tenham assistido a "O Mundo dos Pequeninos" mas, ainda assim, preferi descrever o desenrolar dos fatos de forma meio vaga para evitar "spoilers". Mas como acredito que não tenham entrado nesta página para ler apenas uma sinopse, chega de falatório e vamos à resenha! :)

Não li o livro de Mary Norton, então realmente não tenho como dizer se o roteiro de Hayao Miyazaki e Keiko Niwa foi fiel à obra original. Algumas mudanças óbvias dizem respeito ao local onde ocorre a história - o livro se passa na Inglaterra, enquanto o anime se passa no Japão -, além de vários personagens que existem no livro mas que sequer são mencionados no anime. Mas sendo fiel ao livro ou não, o roteiro é enxuto sem ser apressado, permitindo que o anime tenha uma narrativa ao mesmo tempo empolgante e coesa. Confesso ter achado estranho algumas resenhas reclamando do ritmo arrastado de "O Mundo dos Pequeninos"... será que vimos o mesmo anime?


Como acontece em praticamente todas as obras do Ghibli, as personagens femininas são fortes e lutam por aquilo em que acreditam. Arrietty respeita os pais, preocupa-se em não causar nenhum problema à segurança da família, mas sente aquela pulsão irresistível de explorar o desconhecido por conta própria, mesmo que para isto precise se expor a riscos. Sadako, a tia-avó de Sho, tem um jeito calmo de falar, mas desde o início demonstra claramente estar disposta a ajudar o sobrinho-neto, tão carente de atenção em casa, após a separação dos pais que quase só pensam em trabalho. Homily, a mãe de Arrietty, tenta oferecer uma boa qualidade de vida à filha e ao marido Pod, mas tem alguns arroubos de pânico aqui e ali, preocupada com a segurança de todos. E Haru, do seu jeito maluco e meio psicopata, também tem uma tenacidade admirável em sua luta para provar que a casa está infestada com certos "pestinhas" de formato humano.

Do lado masculino, Pod tem um jeito calmo e de autoridade, transmitindo uma sensação de segurança de alguém que já passou por muita coisa para garantir a sobrevivência da família. Apesar de mais caladão, é palpável o amor e preocupação sinceros que sente pela esposa e pela filha. Quanto a Sho, apesar de doente e enfraquecido, não fica se lamentando pelos cantos pelo triste destino que talvez o aguarde, e descobre um novo fascínio pela vida com a possibilidade de confirmar a existência dos pequeninos.

Por estar suficientemente ocupado com as funções de diretor e criador de "storyboards", Hiromasa Yonebayashi não se envolveu com a animação propriamente dita - pelo menos não de forma oficial, já que aparentemente ele também atuou como intervalador e animador nesta obra. De toda maneira, desta vez a direção de animação ficou por conta de Megumi Kagawa - envolvida com Miyazaki e Isao Takahata desde os tempos do estúdio Topcast, quando foi produzido "Nausicaä" - , e Akihiko Yamashita, que também cuidou do desenho de personagens em "Arrietty", e participou no passado de obras tão díspares quanto "You're Under Arrest" e "A Lenda do Demônio". O trabalho de ambos é sensacional, como seria de se esperar em uma obra do Studio Ghibli, mas me arrisco a dizer que "Arrietty" talvez seja um dos animes mais belos do estúdio em relação ao visual, com uma atenção quase doentia aos detalhes de animação, especialmente quando o macrouniverso dos humanos se choca com o microuniverso dos Colhedores. Méritos também da direção de arte de Noboru Yoshida e Youji Takeshige, com a criação de cenários detalhados e criativos, em que cada rachadura na madeira ou prego na parede pode ser útil para o trabalho dos Colhedores. E o que dizer da magnífica casa de bonecas, com um nível assombroso de detalhes em cada incrustação na parede ou nos objetos de decoração? "Arrietty" é daquelas animações que dá vontade de ver e rever, só para curtir cada um destes momentos sublimes que o Ghibli adora nos proporcionar.

"Arriety" também se destaca no catálogo do Ghibli por ter sido o primeiro anime do estúdio cuja trilha sonora não foi composta por um artista nipônico. Cécile Corbel, uma cantora, harpista e compositora francesa, é fã de longa data do Studio Ghibli, e quando resolveu mandar seu álbum "SongBook vol. 2" para algumas pessoas que admirava, enviou uma cópia para o Ghibli junto a uma carta manuscrita. Por coincidência, o produtor Toshio Suzuki procurava uma trilha sonora com texturas celtas para usar em "Arrietty", e aquele CD acompanhado de uma carta manuscrita chamou sua atenção. Cécile deveria fazer apenas a canção-tema do anime mas, no fim das contas, acabou compondo toda a trilha sonora. Mais uma vez sou obrigado a discordar de algumas resenhas que criticaram a trilha de Cécile Corbel, dizendo que ela destoa do que se passa na tela. As emocionantes melodias celtas e orientais, aliadas à belíssima voz de Cécile, fugiram um pouco das trilhas mais grandiosas e orquestrais de Joe Hisaishi, combinando perfeitamente com o ambiente bucólico aqui representado.



"O Mundo dos Pequeninos" foi um imenso sucesso de público e crítica, se tornando a maior bilheteria no Japão em 2010, além de ser agraciado com o prêmio de "Animação do Ano" no 34º Japan Academy Prize Association. Hiromasa Yonebayashi correspondeu positivamente à expectativa nele depositada por Hayao Miyazaki, e voltou à cadeira de diretor em 2014 com "Omoide no Marnie". Mas voltando a "O Mundo dos Pequeninos", é mais um excelente anime no currículo invejável do Studio Ghibli, recomendado para adultos e crianças que nao cansam de se encantar com as obras fantásticas deste estúdio simplesmente genial.


Marcelo Reis


 

terça-feira, dezembro 09, 2014

Dallos (OVA)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 09/12/2014

Ano: 1983
Diretor: Mamoru Oshii
Estúdio: Pierrot
País: Japão
Episódios: 4
Duração: 30 min
Gênero: Sci-Fi / Mecha / Ação



Eu poderia citar diversos motivos pelos quais "Dallos" merecia uma resenha aqui no Animehaus já há algum tempo:

-Foi dirigido e roteirizado por ninguém menos que Mamoru Oshii, responsável por animações seminais como "Ghost in the Shell", "Ghost in the Shell 2: Innocence", "Jin-Roh" e por quase todos os animes da franquia "Patlabor";

-Seu diretor de arte, Mitsuki Nakamura, foi responsável pela mesma função em verdadeiros clássicos como "Speed Racer", a série original "Mobile Suit Gundam", além de "Hokuto no Ken" e, acreditem se quiser, o maravilhoso "Nausicaä" de Hayao Miyazaki;

-Masaharu Satou, famoso "seiyuu" com uma longa carreira de personagens coadjuvantes em animes como "Dragon Ball", "InuYasha", "Mobile Suit Gundam", "One Piece" e "Pokémon", realiza aqui seu único trabalho como desenhista mecânico.

-Para quem curte as excepcionais músicas dos jogos da Falcom, um dos compositores da trilha sonora de "Dallos" é Hiroyuki Namba, responsável pelas sensacionais versões com arranjos profissionais de clássicos como "Sorcerian", "YS II" e "YS III".  Namba ainda criou as boas trilhas sonoras de "Armitage III" e "Armitage III - Poly Matrix".

Ainda que todos estes motivos justifiquem esta resenha, há uma razão em especial para que "Dallos" seja considerado um anime de importância histórica: ele foi o primeiro anime de todos os tempos lançado em formato OVA.

Devem estar se perguntando por que isto é tão importante. Até então, animes eram lançados basicamente na TV e nos cinemas. As séries de TV geralmente possuíam uma qualidade de animação mais simples, pois além de serem exibidas semanalmente, possuíam um orçamento apertado: não dava para perder tempo nem dinheiro tentando criar uma animação de melhor qualidade. Filmes para cinema, por outro lado, geralmente eram excelentes nos aspectos técnicos em função dos grandes orçamentos e da grande equipe envolvida. Por esta razão, se não fossem um sucesso de bilheteria, o prejuízo era certo.

Ambos os formatos ainda sofriam com a questão dos cortes ou da censura. As séries de TV deveriam seguir as normas para transmissões televisivas, por isto cenas de extrema violência ou conteúdo sexual forte não poderiam ser exibidas. Nos cinemas a questão era puramente financeira: caso um filme contivesse algum tipo de conteúdo controverso, poderia receber uma classificação R18+ (apenas para adultos de 18 anos ou mais), o que prejudicaria sobremaneira seu sucesso financeiro.

O formato OVA (Original Video Animation) permitiu um meio-termo entre o que era feito para TV e cinema. As animações neste formato eram lançadas diretamente no mercado de vídeo, geralmente com um número menor de episódios, se comparadas às séries de TV. Por esta razão, além de não terem um cronograma apertado de produção, possuíam uma qualidade técnica bem superior à encontrada nas séries de TV. Além disto, não sofriam com os cortes ou censuras tão comuns em séries de TV ou filmes para cinema. Não é à toa que o OVA se tornou o formato preferido para animações com cenas de violência e/ou sexo explícito.


Sem querer estragar a surpresa, já adianto que "Dallos" não é um anime incrível. Possui uma história meio genérica de oprimidos lutando contra os poderosos. No século XXI, houve uma forte escassez de energia na Terra, e a situação só melhorou com a abertura de colônias na Lua, que produziam recursos para suprir as necessidades energéticas do planeta. Estes colonos foram forçados a emigrar para a Lua, não têm o direito de voltar à Terra, usam uma fita metálica identificadora na cabeça e são tratados de forma injusta e preconceituosa pela elite governante que permaneceu na Terra. Liderados por Doc McCoy, um grupo de rebeldes tenta provocar o caos e a anarquia, como forma de estabelecer um diálogo com a Terra, para que sejam tratados como iguais e tenham os mesmos direitos que os habitantes que permanecem no planeta.

Completamente alheio a estes episódios, Shun Nonomura é um rapaz de 17 anos que curte consertar e criar apetrechos mecânicos, para desespero de Rachel, garota que nutre uma paixonite pelo rapaz mas acaba ficando em segundo plano quando Shun mergulha de cabeça em suas bugigangas. Mas em meio a um ambiente tão turbulento, com vários atentados terroristas e ataques a órgãos militares e federais, é difícil manter-se totalmente à parte do que acontece, e é apenas questão de tempo até que Shun e Rachel se envolvam diretamente na luta dos "lunares" pela liberdade.

"Dallos" possui algumas características típicas dos animes do início dos anos 80, como o uso de células deslizantes para gerar ilusão de movimento; trilha sonora eletrônica à base de instrumentos sampleados e, muito provavelmente, do recém-lançado Yamaha DX-7; desenho de personagens que remete a obras da década de 70, como "O Pirata do Espaço"; narrativa mais baseada na ação do que no drama. Nem tudo funciona às mil maravilhas: os efeitos sonoros são risíveis em algumas partes; a montagem tem um ritmo estranho, truncado, pulando de uma sequência para outra de forma abrupta; um abuso de diálogos expositivos e repletos de informações que pintam do nada, de forma absolutamente forçada; ocorrem algumas coincidências e burrices que chegam a doer; e as músicas são bem fraquinhas, destoando completamente do que acontece em algumas cenas, mais lembrando trilhas sonoras de filmes pornôs... oops, falei demais! :P

Os personagens não fedem nem cheiram, sendo representações meio batidas já vistas em várias obras. Shun é o rapaz ingênuo e de bom coração que acorda para a realidade e resolve lutar pela justiça; Rachel é a mocinha alienada que quer apenas ser feliz ao lado do seu amor, mas que também acorda para a realidade e resolve lutar pela justiça. Alex Riger é o líder militar da Terra na Lua, desdenha de tudo o que está ligado à Lua e seus habitantes, mas com o tempo acorda para a realidade e resolve lutar pela justiça. Melinda Hearst, noiva de Alex, chega à Lua apenas para visitar o amado, mas se torna peça-chave na luta entre "terráqueos" e "lunares" - logicamente, com o tempo acorda para a realidade e resolve lutar pela justiça. Enfim, já deu para terem uma idéia do que estou tentando explicar. :)

E, afinal, o que é Dallos? A sensação é mais ou menos a mesma que acontece em "Akira" - não no mangá, mas no longa-metragem -, em que o personagem-título praticamente não aparece e não tem importância vital no enredo. Dallos é uma entidade mecânica misteriosa incrustada em uma cratera lunar, é considerado um Deus pelos "lunares". Mas por que Dallos é tão venerado? Qual o seu verdadeiro poder? É realmente uma máquina? É uma divindade? Se descubrirem, me avisem, porque depois de muita conversa e efeitos pirotécnicos, Dallos permanece sendo uma incógnita.

Mas "Dallos" possui muitos pontos positivos, especialmente pelo fato de ter sido lançado no formato OVA. O desenho mecânico no geral é excelente, e como a animação das cenas de ação é fantástica na maior parte do tempo (por favor, lembrem-se que é uma animação de 1983), isto gera sequências de tirar o fôlego, especialmente no último OVA. A ausência de censura permitiu ainda a criação de algumas cenas marcantes de mortes, explosões e mutilações que nunca apareceriam numa série de TV. E apesar dos personagens serem individualmente meio clichês, os rebeldes como um grupo foram representados de forma mais realista: possuem motivações justas, mas não são santos, estando dispostos a matar e morrer pela causa que defendem, o que leva a embates muito, muito sangrentos.



"Dallos" pode não ser um anime memorável, mas está longe de ser uma obra ruim. Tentem não se ater demais ao enredo e aos personagens, se concentrando mais nas sequências de ação e no impacto inesperado de algumas sequências. E só o fato de ser o primeiro anime lançado em formato OVA já faz de "Dallos" um anime obrigatório, pelo menos em termos históricos. Vale lembrar que além da versão original com 4 OVAs, ainda existe o "Dallos Special", que é simplesmente uma compilação dos OVAs em um único longa-metragem.


Marcelo Reis