sexta-feira, janeiro 27, 2017

Twilight Q (OVA)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 27/01/2017

Ano: 1987
Diretor: Tomomi Mochizuki , Mamoru Oshii
Estúdio: Studio DEEN
País: Japão
Episódios: 2
Duração: 30 min
Gênero: Mistério / Psicológico / Romance / Sci-Fi



Engraçado como as expectativas que temos sobre determinados animes podem ser completamente desfeitas em questão de poucos minutos. Antes de assistir a "Twilight Q", eu tinha a impressão de que seria algo parecido com "Kousetsu Hyaku Monogatari", com algumas pitadas de "Darkside Blues" - em outras palavras, um anime mais voltado ao terror, com uma ou outra pitadinha de "gore". Mas na realidade, "Twilight Q" tem um clima mais parecido com a série "Além da Imaginação", com histórias estranhas sobre eventos aparentemente inexplicáveis: até o nome remete ao título original da série americana, "The Twilight Zone".

No papel, o projeto parecia um sonho: 2 OVAs de 30 min e com temáticas completamente distintas, um deles dirigido por Tomomi Mochizuki (Ranma 1/2 e Ocean Waves) e roteiro de Kazunori Itoh (Ghost in the Shell, Urusei Yatsura), e o outro, escrito e dirigido por ninguém menos que Mamoru Oshii (Patlabor, Ghost in the Shell). Infelizmente, o resultado final ficou muito, muito abaixo do esperado - e voltamos novamente à questão das expectativas frustradas mencionada há pouco.



OVA 1 - "Reflection - A Knot In Time"

Mayumi, uma jovem aluna do Ensino Médio, está visitando uma ilha turística com a amiga e colega de sala Kiwako. Ao fazer um mergulho mais profundo no mar, Mayumi encontra uma máquina fotográfica presa a uma pedra. Aparentemente, a câmera veio de algum lugar muito longe, e chegou àquele litoral após viajar por anos através das mais variadas correntes marítimas.

A garota percebe que há um filme dentro da câmera e, curiosa, resolve levar o mesmo para ser revelado. A qualidade da imagem não é lá grandes coisas, em função dos danos causados pelo longo tempo debaixo d´água, mas o que aparece é instigante: Mayumi está na foto, ao lado de um rapaz que ela nunca viu na vida. Quem seria o rapaz? Onde e quando aquela foto foi tirada? Dúvidas e mais dúvidas surgem na mente da garota, que resolve ir atrás da verdade por trás de tudo aquilo.

Este primeiro OVA tem a cara dos animes dos anos 80 (muitas células deslizantes, animação econômica, belo desenho de personagens, etc). Akemi Takada, que fez o desenho de personagens em Kimagure Orange Road, Maison Ikkoku, entre outros animes, também exerce esta função aqui, e seu traço característico e expressivo é sempre muito agradável de se ver. A trilha sonora de Kenji Kawai não é lá grandes coisas, e cairia muito bem como música de fundo em elevadores.

Como o OVA é muito curtinho, o enredo não se desenvolve muito bem. Há uma maré vermelha que cresce por causa da poluição, ameaçando a todos na ilha; uma árvore estranha que emite barulhos parecendo estática; o tempo que pára quando Mayumi observa a foto com o rapaz; acontecimentos futuros que parecem afetar o presente e o passado, entre outras coisas. O problema é que a narrativa vai pra lá, vai pra cá, pula pra um lado e pro outro... e não chega a lugar algum. O ritmo do anime é até muito bom, nunca caindo na monotonia nem na correria, mas se a história dá voltas como uma enceradeira e não diz a que veio, é quase impossível nos envolvermos no que acontece.

A expressão "não fede, nem cheira" é a melhor definição para este OVA medíocre: ninguém morrerá de tédio ou de ódio por assisti-lo mas, por outro lado, dificilmente alguém cairá de amores por ele, e ainda jogará fora um tempo precioso.



OVA 2 - "The Labyrinth Real Estate - File 538"

O início deste OVA é absolutamente incrível: um 747 da Japan Airlines se transforma numa carpa japonesa em pleno vôo, numa sequência animada com brilhantismo. O noticiário mostra que havia 225 pessoas a bordo deste avião, e após seu piloto solicitar autorização para um pouso de emergência, devido a um problema no motor após a decolagem, perdeu completamente o contato com a torre. Com o tempo, acontecem mais e mais eventos semelhantes.

Enquanto isto, uma menininha melequenta, com a bunda sempre de fora e usando uma capacete com uma estrela vermelha e uma blusinha com a palavra "peixe", fica brincando com uma carpa japonesa no aquário do apartamento onde mora. Seu pai, um homem com uma feição meio simiesca, suando em bicas e usando uma blusa com a palavra "pássaro", devora um pote de "lamen" enquando ouve a notícia do sumiço do avião.

Um anime com um início assim só pode ser incrível, certo? Erm... não. Quem acompanha a carreira de Mamoru Oshii sabe que ele é capaz de criar obras magníficas, como todos os Patlabors e os filmes de Ghost in the Shell, mas às vezes abusa dos diálogos expositivos e de cenas que parecem não levar a lugar algum.

Começando pela parte visual: o colorido é suave, tendendo ao azulado, como se estivesse sempre de noite. A animação propriamente dita possui alguns momentos sublimes e incrivelmente detalhados, com uma qualidade comparável à de um longa-metragem, e o desenho de personagens super expressivo de Katsuya Kondo (Ponyo, Kiki's Delivery Service) é perfeito para cenas com tamanha riqueza de detalhes. Mas talvez para compensar o gasto excessivo de células de acetato nestas cenas, na maior parte do tempo há um abuso de imagens paradas e fotos com filtros de cores para dar um efeito de ambiente alienígena aos locais.

Mas se a história e a narrativa fossem boas, estas partes de animação econômica não incomodariam. Infelizmente não é isto o que acontece, e precisamos suportar um monólogo verborrágico, expositivo e interminável de um certo investigador, explicando a seu suposto sucessor tudo o que ocorre com a menininha e o pai. Não entrarei em muitos detalhes para não me tornar tão insuportável quanto o investigador, mas digo apenas que este OVA é uma das obras mais pretensiosas e pseudo-intelectuais que tive o desprazer de assistir até hoje. Nem mesmo a pequena "reviravolta" engraçadinha próxima ao final possibilita qualquer chance de redenção.



Como o tempo de todo mundo é valioso, tenho evitado resenhar animes ruins, preferindo me concentrar em obras que realmente mereçam ser conhecidas. Mas às vezes é difícil aguentar, especialmente quando profissionais tão talentosos entregam algo tão ruim quanto este "Twilight Q". Tá bom, vá lá, o 1º OVA é até suportável, mas o 2º OVA...

Considerem esta resenha um alerta de utilidade pública: "Twilight Q pode fazer seu cérebro vazar e causar liquefação das vísceras. Assista por sua conta e risco."


Marcelo Reis


 

quarta-feira, janeiro 18, 2017

Curtas sobre Curtas #06

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 18/01/2017

Dando continuidade à série "Curtas sobre Curtas", temos duas animações com temáticas e estilos visuais completamente distintos. Em comum, a excelente qualidade de ambas.


THE BIG SNIT

Muita gente costuma dizer que toda e qualquer coisa é passível de se tornar objeto de humor. Pessoalmente, não concordo muito com isto. Por exemplo, acho de um mau gosto incrível fazer piadas sobre pessoas que acabaram de morrer, independentemente se são pessoas famosas (Ayrton Senna, Mamonas Assassinas, etc) ou não. Acho falta de respeito não só com quem morreu mas, principalmente, com parentes e amigos de quem faleceu, que além de ter que lidar com a dor da perda, são obrigados a ouvir gracinhas e desrespeitos às custas do ente querido que morreu.

Outro exemplo de humor com um assunto sério que não me agradou: o filme "A Vida É Bela", de Roberto Benigni. À época do lançamento do filme, houve um clima meio de guerra, meio Copa do Mundo, por causa da rivalidade com "Central do Brasil" em função da disputa do Oscar para Melhor Filme em Língua Estrangeira em 1998. Mas meu desagrado com o filme não tem a ver com isto, apesar de ainda achar uma injustiça sua premiação em detrimento do belíssimo filme de Walter Salles Jr. Não curti mesmo o fato do filme fazer humor com o Holocausto, gerando situações engraçadinhas em um ambiente que, na vida real, era um verdadeiro inferno na Terra. Muita gente gostou, mas este tipo de humor não é pra mim.

E o que todo este falatório tem a ver com "The Big Snit"? O fato desta animação canadense fazer humor com outro assunto muito sério: a destruição do mundo por uma guerra nuclear. E sabem o que é mais incrível? Eu amei esta animação! Como isto é possível? Continuem lendo pra saber.

Escrito e dirigido por Richard Condie em 1985 e produzido pela National Film Board of Canada, "The Big Snit" foi muito premiado ao redor de todo mundo (Annecy, Genie Award, entre outros), além de ter sido indicado ao Oscar de Curta de Animação em 1986. Numa cidade qualquer, um casal está jogando palavras-cruzadas de tabuleiro. A esposa, com um cabelão "à la" Marge Simpson e olhos que insistem em sair de foco - precisando inclusive ser arrancados da cara e sacudidos pra voltar ao normal - aguarda que seu marido faça a sua jogada, para que ela possa fechar a partida. O marido com dentes de retroescavadeira, por outro lado, encontra-se numa "sinuca de bico", e ainda assim continua tentando uma solução para um problema impossível.

Cansada de esperar, ela resolve ir arrumar a casa neste meio-tempo. O marido aproveita para ver seu programa favorito: "Aprenda a Serrar para Adolescentes", e fica doido pra serrar sofá, mesa e o que mais pintar na frente. Tamanha excitação o faz cair no sono um pouco depois, e em função disto, nem ele nem a esposa, que estava fora da sala, veem um boletim urgente na TV, dizendo que uma guerra nuclear global acabou de ser deflagrada. Tudo começa a entrar em colapso, as pessoas entram em pânico, mas o casal, alheio ao que está acontecendo, tenta voltar ao jogo, começa a discutir por motivos fúteis, sem imaginar que o mundo está em seus momentos finais.

"The Big Snit" possui traços bem cartunescos e simples, com colorido suave, e uma animação de boa qualidade. A dublagem do casal é excelente, especialmente nos momentos em que a briga entre ambos começa a esquentar pra valer. E não dá pra esquecer do hilário gato de estimação dos dois: só ouvindo os gritos dele pra entender.

O diretor Richard Condie conseguiu a proeza de tratar um assunto sério como o holocausto nuclear com humor, sem apelar nem forçar a barra, e mantendo o bom gosto o tempo inteiro. Talvez seu grande mérito tenha sido manter o foco no relacionamento pessoal do casal, mostrando como as pessoas gastam tempo e energia brigando por tolices e futilidades enquanto o mundo está literalmente chegando ao fim do lado de fora. E o fato do casal realmente não ter idéia do que está acontecendo torna tudo muito crível, mesmo com todo o humor exagerado. Por outro lado, o desconhecimento de ambos do que está por vir acaba fazendo com que seus últimos momentos sejam mais plenos e satisfatórios do que para o restante da população. E fica a dúvida: até que ponto o conhecimento sobre algo pode ser melhor que a ignorância, e vice-versa?

Assim como o humor em "A Vida É Bela" não me agradou, pode ser que o humor em "The Big Snit" não agrade a algumas pessoas. Mas se tiverem um tempinho e disposição, deem uma chance a esta animação de apenas 10min. Pode ser que tenham uma agradável surpresa.


NO ROBOTS

Em algum momento no futuro, robôs fazem parte da vida cotidiana, mas a convivência com os humanos está longe de ser pacífica. Constantemente presos pela polícia e agredidos por uma turba ensandecida que pede o seu banimento, os robôs precisam viver na clandestinidade.

Um comerciante decide colocar uma placa de "Proibido Robôs" na entrada de sua confeitaria. Mesmo parecendo ser uma pessoa instruída, com vários livros em sua estante que criticam a intolerância (O Senhor das Moscas, O Sol É Para Todos, O Jogo do Exterminador), o comerciante parece cego e embarca na onda de ódio irracional da turba contra os autômatos. E quando ele descobre que um robôzinho está roubando leite de sua loja, o cara fica simplesmente possesso, deixando no ar a dúvida: quem é o verdadeiro ser irracional aqui?

Projeto em conjunto do taiwanês Yung-Han Chang e da americana Kimberly Knoll, alunos à época da San José State University Animation/Illustration, "No Robots" possui um estilo visual que lembra muito as obras de Masaaki Yuasa (Mindgame), especialmente na movimentação dos personagens. Os traços são suaves e expressivos, e os cenários, apesar de não serem super detalhados, são bem-feitos e de muito bom gosto, tudo isto em uma palheta também suave, de tons pastéis. A animação é muito bem-feita, e há um ótimo jogo de luz e sombras ao longo da obra. E completando a parte técnica, uma trilha sonora sutil e eficiente à base de percussões e piano, que aparece apenas para completar o efeito desejado nas cenas.

Numa obra sem diálogos, em que cenas nas quais os personagens aparentemente "falam" contém apenas grunhidos ininteligíveis, é de vital importância que a narrativa consiga se desenvolver usando apenas as imagens e sons, e "No Robots" consegue fazer isto muito bem. É uma obra que, de certo modo, retrata algo bem próximo de nós no Brasil de 2016, com toda a intolerância contra quem pensa diferente em termos políticos ou vive de forma considerada torpe ou impura pelos ditos "cidadãos de bem". É preciso tentar entender o outro, compreender suas motivações, buscando uma vida em harmonia.

Emocionante sem ser piegas, "No Robots" mostra uma maturidade narrativa e visual surpreendente, levando-se em conta a juventude e a pouca experiência de seus realizadores. Não é apenas um projeto estudantil de qualidade: é um curta de animação excepcional, com acabamento profissional e um enredo envolvente.

PS: Há uma cena após os créditos.


Marcelo Reis


quarta-feira, janeiro 11, 2017

Hal (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 11/01/2017

Ano: 2013
Diretor: Ryoutarou Makihara
Estúdio: Wit Studio / Production I.G.
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 60 min
Gênero: Drama / Romance



Após perder o namorado Hal tragicamente em um acidente de avião, Kurumi entra num estado de depressão profunda: não come, não sai de casa, não consegue mais nem ao menos chorar a morte do seu amado. O robô humanóide Q-01 é requisitado para tentar salvar a garota deste bloqueio emocional. Assumindo a forma externa de Hal, Q-01 viaja ao encontro de Kurumi, e enquanto faz de tudo para devolver à garota a alegria de viver, vai conhecendo um pouco mais sobre o relacionamento de Hal e Kurumi, além de entender um pouco mais o que é ser humano, o que significa sentir, sofrer, amar.

Q-01, ou o novo Hal, tem sempre à mão um cubo mágico 5x5 desmontado que era do Hal de carne e osso, com várias mensagens escritas à mão pelo rapaz. À medida em que o robô monta uma das faces do cubo, descobre o significado de uma nova mensagem, mostrando coisas que Kurumi gostaria de fazer com Hal. Q-01 procura realizar cada um destes desejos de Kurumi, tentando fazer com que a garota saia de seu casulo emocional e volte a ser a garota energética e feliz de outrora.

Fiquei sabendo da existência deste anime muito por acaso, enquanto pesquisava informações para uma outra resenha, e foram tantos elogios à qualidade da obra, às emoções fortes que ele despertava, que foi difícil resistir à curiosidade. Infelizmente, talvez pela expectativa elevada, "Hal" foi uma grande decepção.

Para começar, "Hal" é uma obra bem curta, com apenas 60 minutos de duração. Desde o início, fica a impressão de que tentaram colocar coisas demais em um espaço de tempo insuficiente. Com isto, a narrativa fica acelerada, prejudicando o desenvolvimento dos eventos que ocorrem em cena. Isto também resulta na criação de personagens pouco convincentes e nem um pouco cativantes, cujas motivações e modificações no comportamento parecem ocorrer apenas porque o roteirista queria que fosse assim.


A transformação de Q-01 em Hal é um exemplo de proposta que não funciona na prática. Se pegarmos uma obra como "Ghost in the Shell", por mais humana que a protagonista pareça, sempre é possível perceber que há uma máquina por baixo daquela aparência. Em "Hal" isto não acontece: desde a transformação inicial, o personagem parece apenas um adolescente meio lerdo, sem traquejo social e um pouco servil demais, sem nenhuma característica que dê a mínima impressão de que ele é, na verdade, um robô.

A mudança de Kurumi ao longo de "Hal" também não convence. Se no início ela parece reticente e, por que não, um pouco curiosa quanto ao sucesso da empreitada de Q-01/Hal, rapidamente seu coração começa a se abrir simplesmente porque aquele robô tão servil tenta realizar os desejos que ela escreveu no cubo mágico.

Com o passar do tempo, "Hal" vai se tornando uma obra cada vez mais previsível, bobinha e pueril, apelando para a pieguice e o dramalhão. Ocorre uma certa reviravolta em determinado momento do anime que, sinceramente, me pareceu apenas uma tentativa forçada de dar uma dimensão ao anime que, no fundo, ele realmente não possui.

Tecnicamente, "Hal" não decepciona, mas também não chega a brilhar. Os cenários são lindos e bem detalhados, e a animação é relativamente simples se comparada a de outros longas-metragens, especialmente se pensarmos que é uma obra da normalmente brilhante Production IG. O desenho de personagens é agradável e expressivo, ainda que o traço do personagem Hal seja meio genérico.



Se "Hal" tivesse uma narrativa mais equilibrada, apelando menos para os clichês e emoções forçadas, o impacto da obra provavelmente seria bem diferente - talvez até mesmo a tal reviravolta funcionasse melhor. No papel, as idéias até pareciam promissoras mas, na prática, o resultado final decepcionou bastante. Uma pena, realmente.


Marcelo Reis


segunda-feira, janeiro 02, 2017

Fairy Florence (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 02/01/2017

Alternativos: Yōsei Florence, A Journey through Fairyland
Ano: 1985
Diretor: Masami Hata
Estúdio: Sanrio Film
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 90 min
Gênero: Aventura / Fantasia / Romance



Muitos animadores buscaram, ao longo dos anos, criar obras tematicamente semelhantes à obra-prima "Fantasia", criada por Walt Disney em 1940. Desde Osamu Tezuka com seu curta-metragem "Pictures at an Exhibition", de 1966, inspirado na suíte para piano de Modest Mussorgsky, até Bruno Bozzetto com o excepcional "Allegro Non Troppo" de 1976, muita gente tentou dar sua contribuição para o universo das animações com segmentos curtos, não conectados entre si e embalados por músicas clássicas, com resultados variados. "Fairy Florence" se encaixa um pouco neste perfil, com a diferença de ter um enredo que une todas as seções.

Durante muito tempo, "Fairy Florence" foi considerado o último longa-metragem da Sanrio Films, já que a partir de 1985, a Sanrio passou apenas a produzir OVAs, curtas e séries de TV baseados em seus personagens. Isto mudou depois que a empresa voltou a criar filmes de 2007 em diante, geralmente associada a outros estúdios como Madhouse e Studio Comet. Dirigido por Masami Hata, responsável pelo belo e doloroso "Chirin no Suzu", "Fairy Florence" não atinge o mesmo nível de excelência narrativa, ainda que seja mais uma obra de qualidade técnica impecável da Sanrio Films.

Michael é um jovem rapaz que toca oboé na orquestra jovem local mas que, no fundo, prefere cuidar das flores na estufa da escola onde estuda. Michael adora tocar músicas para as plantas, mesmo sofrendo com a alergia que tem ao pólen, que o faz espirrar sem parar. Toda esta dedicação às flores afeta cada vez mais o seu desempenho na orquestra: sempre atrasado, derrubando tudo o que vê na frente, errando o que toca e espirrando nas horas mais impróprias.

Órfão de um grande compositor e uma excepcional violinista, Michael foi acolhido ainda muito jovem pelo professor de música e maestro da orquestra, que vê um futuro brilhante para o rapaz, desde que ele coloque os pés no chão, pare de sonhar tanto e se dedique de corpo e alma à música. Michael agora enfrenta um dilema: deve continuar no caminho da música, mais palpável, ou mergulhar de cabeça no mundo idílico das flores? E isto é dito aqui de forma literal, pois ele conhece a bela e delicada Florence, fada protetora das flores que adora quando Michael toca oboé, e o convida para conhecer Flowerland, a terra das flores. Mas Musica, um pequeno duende, fará de tudo para mostrar que a música, na realidade, é onde está a verdadeira felicidade de Michael.


Assim como "Chirin no Suzu", "Fairy Florence" possui um estilo clássico mais parecido com animações ocidentais antigas, mas com pequenos detalhes típicos de animes, como o desenho de personagens. Os cenários em tons pastéis são delicados, muito detalhados, e a animação propriamente dita é excepcional na maior parte do tempo: o movimento das mãos, a terra caindo no vaso, as flores desabrochando, tudo é feito com um capricho fora do normal.

E a parte musical é até covardia. Além de alguns temas originais belíssimos criados por Naozumi Yamamoto especialmente para o filme, há um verdadeiro desfile de obras clássicas famosas de compositores como Beethoven, Mozart, Brahms, Chopin, entre outros, que servem de pano de fundo para belas sequências animadas em Flowerland.

"Fairy Florence" possui um ritmo geralmente mais lento e cadenciado, sem que se torne chato ou maçante por causa disto. É um grande prazer assistir a cada pequena sequência que se desenrola na tela, e fica sempre no ar aquela curiosidade gostosa em relação ao que virá em seguir. A sincronia entre imagem e som é ótima, e é interessante ver uma obra no estilo de "Fantasia" com alguns efeitos sonoros típicos de animes, além da participação especial de personagens da Sanrio, como a gatinha Hello Kitty, o pinguim Tuxedo Sam, as gêmeas Kiki & Lala e o coelho My Melody.

Se "Fairy Florence" tivesse mantido o esquema de curtas não interligados, como em "Fantasia", o resultado final seria quase perfeito. O problema é justamente a tal historinha que interliga os quadros. Sabemos que Michael perdeu os pais, mas não sabemos até que ponto isto pode ter influenciado no comportamento do rapaz, muito sonhador e pouco afeito ao contato com outras pessoas. O relacionamento que surge entre ele e Florence é totalmente forçado desde o início, e mesmo que provavelmente aconteça somente em sua mente, ele não empolga em momento algum. E rumo ao desfecho, infelizmente, a narrativa começa a ficar arrastada, com dramas que não convencem e uma resolução meio "final feliz" demais.



"Fairy Florence" tenta ser mais profundo e poético do que é na realidade. Vale muito a pena ser assistido, pois possui qualidades inegáveis, mas a narrativa em si deixa muito a desejar. Se eu tivesse que resumir "Fairy Florence" em poucas palavras, diria que é um anime interessante, diferente, instigante, mas nem um pouco apaixonante.


Marcelo Reis