segunda-feira, novembro 28, 2016

Legend of the Sacred Stone (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 28/11/2016

Alternativos: Sheng Shi Chuan Shuo
Ano: 2000
Diretor: Chris Huang
Estúdio: Pili International Multimedia
País: Taiwan
Episódios: 1
Duração: 99 min
Gênero: Ação / Fantasia / Drama / Luta



O "budaixi" é uma forma de teatro de fantoches bastante popular em Taiwan, sendo uma das principais formas de entretenimento do país há muitos e muitos anos. O "wuxia", termo que engloba obras literárias e cinematográficas de artes marciais chinesas, geralmente ambientadas nos períodos correspondentes aos reinados das grandes dinastias da China, também desfruta de grande popularidade, não apenas em Taiwan, mas no mundo todo.

Em 1988, a família Huang, provavelmente a mais renomada e capacitada trupe de titereiros de Taiwan e que, em 1991, fundaria o estúdio Pili International Multimedia, resolveu unir estas duas grandes paixões dos taiwaneses, criando a série de TV "Pili", que significa "trovão" em Min-Nan, dialeto chinês falado em algumas partes da China e de Taiwan. "Pili" se tornou um grande sucesso, e novos episódios são produzidos até hoje: um exemplo impressionante de longevidade.

"Legend of the Sacred Stone", longa-metragem produzido no ano 2000, é um "spin-off" da série "Pili". Há 400 anos, Wulin, o mundo das artes marciais, é ameaçado por um demônio chamado Mo Kuei. O grande sábio Su Huen-Jen convoca os herdeiros das três maiores escolas para ajudar a evitar este desastre. Membros de Shaolin, Wudang e várias outras escolas se reúnem no Monte Tianjin para encurralar Mo Kuei. Após uma longa batalha com os herdeiros das grandes escolas, Mo Kuei é derrotado, e Su Huen-Jen prepara uma armadilha para prendê-lo eternamente.

Bem, a história e a narrativa nem de longe são os maiores trunfos desta animação, o que é ainda mais prejudicado pela versão mais comum disponível em inglês. O filme original sem cortes, com 120 minutos, foi lançado apenas em Taiwan e sem legendas. Foi lançada uma versão no Japão com legendas em inglês, mas apenas 99 minutos de duração e extremamente mal-editada. O resultado é um filme confuso, com ritmo irregular - cenas longuíssimas e maçantes são seguidas por outras completamente truncadas e corridas. Muita gente reclama que alguns "wuxias" dirigidos por Chor Yuen na época do estúdio Shaw Brothers são confusos - acreditem: vocês não viram nada.


Mas, enfim, se alguém se interessa pela historinha baba, basta dizer que Jian Jun, um dos três herdeiros da batalha original e desfigurado por um incêndio, quer a todo custo tomar posse da "Pedra do Paraíso", capaz de conceder qualquer desejo ao seu portador. Desta forma, ele poderia voltar a ter sua antiga aparência e, de quebra, destruir o grupo de demônios chamado "Os Hostis", que querem usar a "Pedra do Paraíso" para ressuscitar Mo Kuen.

Se a história é bem chinfrim e mal-contada, com um abuso de dramalhões, clichês, diálogos expositivos e tudo o mais, não dá pra reclamar da produção propriamente dita. Os fantoches são muito expressivos e bem-detalhados, com figurinos que parecem ter saído direto de um filme dos Shaw Brothers. Grande parte dos cenários consiste de maquetes impressionantes - mais uma vez, parecem aqueles cenários suntuosos que ocupavam o enorme estúdio dos Shaw Brothers em Hong Kong, só que em tamanho miniatura. Existe um pouco de CGI de qualidade duvidosa aqui e ali mas, no geral, quase todos os efeitos utilizados são práticos, e funcionam que é uma beleza!

E em se tratando de uma animação ligada a artes marciais, muitos devem estar se perguntando: e as lutas? Podem ficar tranquilos, pois a ação é simplesmente sensacional! A equipe do Pili não apenas demonstra um talento impressionante na manipulação dos fantoches, mas também usa cortes de câmera e zooms com extrema competência, para dar ritmo e gerar tensão e emoção durante os combates. Quem diria que seria possível criar lutas tão empolgantes e bem coreografas usando apenas fantoches?

Todas as vozes dos personagens, incluindo mulheres, são feitas pela mesma pessoa, Vincent Huang. Ainda que o trabalho dele seja realmente muito bom, confesso que me decepcionei um pouco em alguns momentos. Primeiro, porque alguns personagens masculinos possuem praticamente a mesma voz, o que gera uma certa confusão em algumas cenas. Segundo, porque no caso de uma personagem feminina importante da história - Ru Bing, filha de Jian Jun - é óbvio que um homem está fazendo a voz da mulher, fazendo com que cenas dramáticas acabem ficando involuntariamente engraçadas e um pouco ridículas.

A trilha sonora é um pouco psicótica: em alguns momentos, temas orquestrais e solenes combinam bem com as cenas, mas em alguns outros momentos, entra uma trilha sonora eletrônica que, apesar de legal, não combina em nada com um "wuxia". Próximo ao final, então, durante uma luta feroz entre dois personagens, entra uma música totalmente nada a ver, mais parecida com "surf music" dos anos 50, tirando toda a emoção e a força da cena.



"Legend of the Sacred Stone" é uma obra estranha. Vale muito a pena assistir, nem que seja apenas para admirar os fantoches, as lutas e os cenários, mas fica aquela sensação incômoda de que esta obra tecnicamente impressionante poderia ter ido muito mais longe. Tomara que as obras mais recentes do Pili, como o longa "The Arti" e a série para TV "Thunderbolt Fantasy", esta última uma co-produção com o Japão, não sejam incríveis apenas na parte técnica, mas também em relação ao conteúdo e à narrativa.


Marcelo Reis


quinta-feira, novembro 24, 2016

ERASED (TV)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 24/11/2016

Alternativos: Boku Dake ga Inai Machi
Ano: 2016
Diretor: Tomohiko Ito
Estúdio: A-1 Pictures
País: Japão
Episódios: 12
Duração: 23 min
Gênero: Drama / Mistério / Psicológico



"ERASED" foi uma das séries mais comentadas da temporada de inverno 2016, e por se tratar de um anime exibido no bloco "noitaminA" da Fuji TV, havia grandes possibilidades de todo este "hype" ser justificado. Baseada no mangá "Boku Dake ga Inai Machi", de Kei Sanbe, cujo nome em tradução livre seria algo como "A Cidade Apenas Sem Mim", "ERASED" é uma das séries mais angustiantes que me lembro de ter assistido. Poderia ter sido uma obra-prima, mas vários detalhes impedem que isto aconteça.

Satoru Fujinuma é um "mangaka" que luta para obter sucesso. Com 29 anos e precisando pagar as contas, trabalha também como entregador de pizzas. Caladão, como se quisesse bloquear emoções enterradas profundamente em sua psique - em suas próprias palavras, "tem medo de chegar ao coração da própria mente - Satoru possui uma habilidade especial chamada "Revival". O rapaz vê uma borboleta azul quando algo ruim está prestes a acontecer e, neste momento, ele é capaz de voltar entre 1min e 5min no passado. Neste intervalo, ele pode reviver a mesma situação, tentar descobrir o que está errado e intervir, evitando que alguma tragédia aconteça. E nessa brincadeira, muitas vezes ele acaba se dando mal e se arrebentando por completo.

Após um destes "contratempos" mandá-lo ao hospital, Satoru recebe a visita da mãe, Sachiko, uma mulher de 52 anos que parece não envelhecer e é chamada pelo filho de "yôkai" (demônio), devido à sua capacidade quase sobrenatural de ler a sua mente. Sachiko chega para ajudar Satoru enquanto ele se recupera, e fica feliz ao saber que Airi Katagiri, a jovem colega de trabalho do filho, parece nutrir uma afeição pelo rapaz.

As coisas parecem ir bem, mas algo terrível acontece, e em meio a uma onda de estresse quase incontrolável, Satoru passa por um episódio de "Revival" diferente de todos os outros, que o manda 18 anos em direção ao passado. Por que Satoru voltou àquele período? E o que o rapto e assassinato de três garotas de 11 anos por um "serial killer" no passado teria a ver com a tragédia de seu presente? E será que Satoru, agora um garoto de 11 anos com alma de adulto, seria capaz de alterar o passado, para que todas estas tragédias ao seu redor nunca aconteçam?

Eu poderia falar um pouco mais sobre o enredo de "ERASED", mas qualquer coisa que eu dissesse a mais poderia gerar um tremendo "spoiler", o que seria um crime com esta série excepcional. Apesar de ter este elemento fantástico do "Revival" e da viagem no tempo, "ERASED" é um anime bem embasado na realidade. O desenho de personagens, expressivo e bem diferenciado, tende a um estilo mais comum a obras infantis, o que gera um contraste chocante com as situações fortíssimas exibidas em cena. Há assassinatos, agressões brutais de adultos contra crianças, violência psicológica, mas nada disto acontece por acaso, tudo tem uma razão plausível para ser assim.


O roteiro de Taku Kishimoto (Silver Spoon) consegue um equilíbrio quase perfeito entre as cenas leves e pesadas. Há algumas tiradinhas bem-humoradas, como o fato de Satoru "pensar em voz alta" e se colocar em apuros por isto, que funcionam muito bem e não parecem deslocadas numa obra tão pesada e pungente. E as cenas mais duras não apelam para o "gore" nem nada do tipo: as coisas são mais sugestionadas do que mostradas, e isto muitas vezes gera um efeito mais forte do que a violência explícita. Ainda em relação à narrativa, é desesperador ver a situação de Satoru, percebendo que quanto mais variáveis ele altera no passado, mais imprevisível se torna o futuro, dificultando ainda mais as probabilidades de sucesso de sua empreitada.

Os personagens são um show à parte. Desde o protagonista Satoru, com seu jeito meio atrapalhado, mas determinado, passando por sua mãe Sachiko, com inteligência aguçada e sempre um passo à frente do filho, e chegando à sua turma de colegas de escola, cada um possui uma personalidade bem delineada e que não cai nos estereótipos tão comuns em animes. Merecem destaque Kenya, colega inteligentíssimo de Satoru cujo olhar demonstra o quando ele está ligado em tudo o que acontece com o amigo; e Kayo Hinazuki, garota cujo assassinato no passado marcou para sempre a vida de Satoru, e que tem o arco dramático mais pungente de todos. Até mesmo o vilão da história, um verdadeiro psicopata, tem razões convincentes para que aja de tal maneira, especialmente nos episódios finais da série.

Uma curiosidade: as cenas que se passam no presente estão numa proporção visual de 16:9, enquanto as cenas do passado estão num widescreen maior, de 2.35:1, dando um aspecto mais cinematográfico às mesmas.

Se "ERASED" mantivesse o clima e a narrativa dos quatro ou cinco episódios iniciais, seria forte candidata a entrar na minha lista de favoritos. Poucas vezes vi algo tão verdadeiramente melancólico e angustiante, em que cada situação aparentemente tranquilizadora dá lugar a outra desesperadora, tudo isto em uma ambientação muito convincente. O problema da metade em diante é que a trama policial envolvendo a busca pelo assassino é comum demais, e certas situações que acontecem entre Satoru e os colegas são muito bobinhas e pueris em relação ao que vinha acontecendo - sinceramente, o tal lance do "quero ser um superherói" é absolutamente podre, e os amigos acreditam na história de Satoru com uma facilidade que não convence. Os três últimos episódios me pareceram especialmente corridos, como se precisassem espremer muita história no tempo restante, e a revelação de quem é o criminoso é bem previsível. E não há explicação nenhuma sobre o tal do "Revival": o que é aquilo? Por que acontece com Satoru? Por que ele foi capaz de voltar tanto tempo em direção ao passado?

Por outro lado, o final propriamente dito é excepcional. As coisas começam a ficar interessantes com uma reviravolta que acontece em certo ponto da série, e o desenrolar dos fatos no último episódio gera situações de muita tensão psicológica, desencadeando num desfecho extremamente satisfatório do ponto de vista emocional.



"ERASED" merece a badalação que recebeu, mas talvez com um pouco menos de entusiasmo. Pode não ter sido a obra-prima que prometia, mas mesmo com probleminhas menores aqui e ali, é uma série sólida, coesa e que pega o espectador de jeito desde o 1º minuto. Recomendo fortemente.


Marcelo Reis


segunda-feira, novembro 21, 2016

Curtas sobre Curtas #04


OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 21/11/2016

E eis que ressurge das cinzas a seção "Curtas sobre Curtas"! Apesar de continuar fã de animes e adorar resenhar séries, OVAs e longa-metragens da "Terra do Sol Nascente", me sinto um pouco em dívida com várias obras sensacionais lançadas ao redor do mundo todo. E o mundo dos curtas é perfeito para, de certo modo, "pagar" esta dívida: afinal, curtas-metragens, quer sejam de animação ou "live-action", estão longe de receber a mesma atenção que os longas da Pixar ou do Studio Ghibli, por exemplo.

E com tantas obras incríveis que merecem um reconhecimento maior, continuaremos usando esta seção para atiçar a curiosidade dos leitores e, quem sabe, despertar de vez a paixão pelos curtas de animação.

Hoje temos dois curtas clássicos da China, produzidos no início da década de 80.



THREE MONKS

Este premiado curta de animação do Shanghai Animation Film Studio (Urso de Prata para Curta-Metragem no 32º Festival de Berlim (1982); Melhor Animação no Golden Rooster Awards 1981; Melhor Animação no Huabiao Awards 1980) é baseado num antigo provérbio chinês:

"Um monge carregará dois baldes de água nos ombros, dois monges dividirão a carga, mas coloque um terceiro e ninguém vai querer buscar água."

Nesta obra de traços simples, cenários quase inexistentes, mas personagens expressivos e animação fluida, conhecemos um monge que vive num templo, no alto de uma montanha. Com seu indefectível robe vermelho, ele mantém a mesma rotina dia após dia: confere a água do vaso no altar do templo, desce toda a montanha para buscar dois baldes de água no rio, enche o barril com água para o dia, troca a água do vaso, e medita em frente ao altar até a hora de dormir.

A chegada de um 2º monge ao templo altera um pouco o dia-a-dia do templo. Magro, alto e com um robe azul, este 2º monge divide a carga do trabalho com o 1º monge, ambos tentando manter a rotina do templo intacta, ainda que um ou outro contratempo afete um pouco o andamento das coisas. Mas exceto por um ratinho que teima em aparecer para bagunçar o ambiente, no geral tudo continua fluindo bem.

Mas com a chegada de um 3º monge, baixo, gordo, com roupa alaranjada e que sua horrores debaixo do sol, as coisas tomam um rumo completamente diferente. Apesar de ter uma boa índole, este monge é bem glutão, não trabalha com a intensidade que seria recomendável. A busca da água no rio começa a ser motivo de discussões, a desarmonia e a desordem passam a imperar no templo, assim como a preguiça, a falta de disciplina e o desinteresse. Quanto ao futuro do templo? Só o tempo dirá...

Por se tratar de uma animação sem diálogos, "Three Monks" pode ser assistido sem problemas por pessoas de todos os lugares. Por esta razão, a excelente trilha sonora tipicamente chinesa tem papel fundamental, pois grande parte da emoção e da tensão é passada através dos sons, especialmente porque cada monge é representado por um instrumento específico. É um ótimo exemplo de utlização da música literalmente como uma linguagem universal.

Funcionando como uma sátira à burocracia do sistema, especialmente à ineficiência dos funcionários de repartições públicas, "Three Monks" mostra, de forma simples e eficaz, a importância de um trabalho em equipe eficiente para manter as coisas funcionando de acordo. E foi lançada num momento importante na China, o renascimento da animação chinesa, após o término do terrível período da Revolução Cultural.

PS: Há uma pequena cena após os créditos finais.



MONKEY FISHES THE MOON

Mostrando mais uma vez a versatilidade do Shanghai Animation Film Studio ao criar animações com as mais variadas técnicas, "Monkey Fishes the Moon" é praticamente todo realizado com animação de recortes, exceto em uma ou outra parte, em que a animação tradicional também é utilizada.

Um grupo de macacos vive numa floresta, sempre se divertindo, pegando frutas nas árvores, roubando comida uns dos outros... em outras palavras, fazendo "macaquices" sem parar. Certo dia, um dos macacos repara na bela lua cheia que surge entre as montanhas, e outro macaco acha que seria o máximo pegar aquele objeto redondo e reluzente. O grupo, então, abusa da curiosidade, criatividade e força de vontade para superar dificuldades e realizar o impossível.

Um detalhe que chama a atenção de cara é a trilha sonora: ao contrário da maioria das animações chineses produzidas antigamente, que utilizavam como fundo musical trilhas sonoras tipicamente chinesas, "Monkey Fishes the Moon" tem uma trilha com um climão de filmes americanos das décadas de 40 e 50, com uma forte presença de saxofone. E assim como "Three Monks", "Monkey Fishes the Moon" não contém diálogos, e a música tem efeito fundamental para complementar as emoções retratadas na tela.

Em termos visuais, esta obra é simplesmente primorosa. Os personagens são incrivelmente expressivos, a animação é super fluida e dinâmica, há uma atenção brutal aos detalhes dos movimentos corporais, sem contar o cuidado assombroso no uso de luz, sombras e cores. Mesmo se a narrativa em si não empolgasse, valeria a pena assistir a "Monkey Fishes the Moon" apenas para admirar a excelência técnica da obra.

Felizmente, o enredo é cativante, e a narrativa possui um ótimo ritmo, gerando uma tensão surpreendente para uma animação tão curta e teoricamente voltada mais para o público infantil. Sem passar a impressão de querer dar algum tipo de sermão, a obra mostra a importância do trabalho em conjunto, buscando o bem da sociedade como um todo. Quando o individualismo começa a imperar, com cada um pensando apenas no próprio bem-estar e querendo a todo custo uma posição de destaque no grupo, as coisas podem desandar de vez.

Mesmo com apenas 10 minutos, "Monkey Fishes the Moon" pode ser considerado uma das melhores animações do Shanghai Animation Film Studio, o que, convenhamos, não é pouca coisa.


Marcelo Reis


sábado, novembro 12, 2016

Cleopatra (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 12/11/2016

Alternativos: Kureopatora
Ano: 1970
Diretor: Osamu Tezuka, Eiichi Yamamoto
Estúdio: Mushi Production
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 112 min
Gênero: Comédia / Erótico



E até difícil saber por onde começar a falar de um anime como "Cleopatra", 2º longa-metragem da série de filmes adultos "Animerama", idealizada por Osamu Tezuka e produzida por seu estúdio à época, Mushi Production. "Cleopatra" foi co-dirigido pelo próprio Tezuka e, ainda, por Eiichi Yamamoto, diretor de "Jungle Emperor Leo".

No papel, "Cleopatra" parecia um projeto promissor. Afinal, o que o gênio de Tezuka poderia fazer com a incrível história da rainha egípcia que conquistou os corações de Júlio César e Marco Antônio, evitando que o Egito fosse completamente subjugado e humilhado à época do Império Romano, especialmente sabendo que adicionaria pitadas nada sutis de erotismo a este enredo? Infelizmente, na prática, o mestre Tezuka errou feio a receita do bolo, e "decepcionante" é uma palavra fraca para descrever o resultado final.

"Cleopatra" começa numa cidade futurista, e em uma cena bizarra com atores reais cujas cabeças foram substituídas por desenhos, somos informados que habitantes de um sistema estelar chamado Pasateli odeiam os terráqueos, e seu mantra é: "Plano de Cleópatra". Para descobrir o que isto significa, três pessoas deste grupo serão enviados ao passado, mais especificamente ao Egito Antigo, à época em que Cleópatra reinava. Como é apenas o espírito que viaja no tempo, e não o corpo, as almas destas três pessoas entrarão em corpos de seres que viviam naquela época. Jiro voltará como Ionius, um escravo de César; Mary voltará como Lybia, uma princesa egípcia; e Harvey voltara como Rupa, "alguém" muito próximo a Cleópatra.

A partir daí, somos enviados a um Egito num momento turbulento, em meio à invasão dos romanos, com direito a mortes violentas, pilhagens, estupros e tudo o mais. E aqui já vemos de cara talvez o maior problema desta obra: a incapacidade de encontrar um tom adequado à narrativa. Como podemos nos importar com o que acontece, se logo após um estupro aparecem várias cenas engraçadinhas, com um humor que definitivamente não combina em nada com o que passou antes?

Um Júlio César esverdeado, prepotente e que se acha "o tal" conquista o país, e os egípcios, sabendo que o imperador romano é louco por sexo, arquitetam um plano para enfraquecê-lo usando a sedução feminina... e Cléopatra entra em cena. Por sugestão de sua serva Apollodoria, Cleópatra, irmã do rei Ptolomeu XIII, tentará subjugar César através do sexo e da astúcia. Por ser uma mulher feia e pouco atraente, Cleópatra passará por um ritual mágico piradíssimo, para que se transforme numa deusa da beleza e do sexo.

Antes de começar a descer a lenha no anime - e, infelizmente, não me resta outra alternativa - vamos aos pontos positivos de "Cleópatra". Para começar, é uma obra de excelente qualidade técnica, com cenários bem detalhados, animação fluida, desenho de personagens expressivos, além de muita criatividade no uso de cores psicodélicas em várias cenas. Apesar de não serem explícitas, as cenas de sexo em "Cleópatra" são criativas e interessantes, em especial uma que se passa numa sala de banho (mas claro que pinta o humor fora de hora pra estragar tudo). Há uma outra cena excepcional mostrando o assassinato de Júlio César, feita como se fosse uma peça de teatro Noh: tudo funciona perfeitamente do início ao fim.


Mas os problemas... ah, os problemas! Pra começar, "Cleopatra" é uma obra muito sexista: praticamente todas as mulheres em cena aparecem nuas ou com os seios à mostra, e parecem ser sempre lascivas e mundanas, como se existissem apenas para transar. Em determinada cena, Júlio César arranca uma garota dos braços do pai, imediatamente apalpa os seus seios em público, rapta a garota para ser sua escrava sexual. Ao chegar ao palácio, dá um beijinho na bochecha da garota, e ela... se comove! E isto sem contar um outro momento no anime em que o "fantástico" plano de defesa contra os romanos consiste em que todas as mulheres transem com o máximo possível de invasores, para que eles fiquem fracos e se tornem presas fáceis. Sério, se eu fosse mulher, eu ficaria p... da vida em ser retratada desta maneira num anime.

Na vida real, Cleópatra era considerada uma mulher inteligente, estudiosa, excelente estrategista militar, falava vários idiomas e adorava Filosofia e História. Neste anime, ela é reduzida a uma gostosa bobalhona que se apaixona com facilidade e se deixa levar pela opinião de Apollodoria. E o que dizer do fato de todas as egípcias em cena possuírem a pele bem morena, mas justamente a rainha toda-poderosa ser branca como a neve? Júlio César é um sedento por sexo que vira um bebezão ao voltar a Roma, e Marco Antônio é retratado como um completo idiota que só falta babar em cena.

Mas os problemas vão longe. "Cleopatra" não se define como paródia, como uma obra séria, sequer como obra pornográfica. O cérebro entra em parafuso quando, na mesma cena de batalha, aparece alguém morto com crueldade, o braço arrancado ao lado, e logo depois vem uma cena engraçadinha com um soldado sentado num vaso sanitário, cagando de medo. Quando isto acontece por várias vezes na mesma obra, é sinal de que algo muito errado aconteceu no roteiro.

Por sinal, o humor em "Cleopatra" é geralmente fraco e aparece nas horas mais impróprias. Há tanta loucura fora de propósito nas cenas que, sinceramente, quem aprovou um roteiro destes só podia estar doido ou sob efeito pesado de alguma droga. Aparece o Frankenstein, um cara com microfone e fone de ouvido em pleno Egito Antigo, uma geladeira dentro do templo, personagens de Tezuka como Shunsaku Ban e Astroboy surgem em cena rapidamente... e pra quê? Só para parecer algo espertinho?

Pra não dizer que sou um chato: "Cleopatra" foi um fracasso retumbante de público e crítica em todo o mundo, e a decepção do próprio Tezuka com o resultado foi tão grande que "Belladonna of Sadness", 3ª e última obra da série "Animerama", foi dirigida apenas por Eiichi Yamamoto.




Acreditem: apesar de tudo isto que falei, ainda acho que "Cleopatra" é uma obra que mereça ser vista. Primeiro, porque possui alguns momentos iluminados, e é sempre um prazer ver uma animação de Tezuka feita com um orçamento maior. E segundo, para que possam imaginar o quanto este anime poderia ter sido excepcional com um roteiro melhor e uma direção mais firme.


Marcelo Reis