OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 28/01/2015
Ano: 2009
Diretor: Sunao Katabuchi
Estúdio: Madhouse
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 95 min
Gênero: Drama / Magia / Slice-of-Life
Imagino que cada pessoa siga alguns critérios bem particulares na hora de escolher algum anime para assistir. Eu, por exemplo, tenho uma queda especial por alguns estúdios (Ghibli, Madhouse, Studio 4ºC), diretores (Hayao Miyazaki, Isao Takahata, Mamoru Hosoda, Satoshi Kon [RIP]), roteiristas (Chiaki Konaka, Keiko Nobumoto, Dai Satou, Mamoru Oshii) e gêneros / estilos (cyberpunk, drama, sci-fi, slice of life), além de obras obscuras que quase ninguém conhece.
Ao pesquisar alguns longas-metragens da Madhouse para assistir e resenhar, "Mai Mai Miracle" apareceu na minha frente e me chamou a atenção por vários motivos. Havia sido dirigido e roteirizado por Sunao Katabuchi, que realizou um excelente trabalho nestas mesmas funções em toda a série "Black Lagoon" e em "Princess Arete". Sua temática "slice-of-life" com elementos de drama e fantasia foi comparada a duas obras do Ghibli que adoro: "Tonari no Totoro" e "Omohide Poro Poro".
Madhouse + diretor e roteirista interessante + estilo que me agrada + cara de obras do Ghibli = Oba, este anime é bom! :)
"Mai Mai Miracle" é uma versão romantizada da autobiografia da autora Nobuko Takagi e se passa 10 anos após o final da II Guerra Mundial. Shinko Aoki é uma pré-adolescente criativa, curiosa e muito energética que vive na cidade de Hôfu, na província de Yamaguchi, localizada na região sudoeste de Honshu, maior ilha do Japão. Como o pai passa muito tempo viajando a trabalho, Shinko mora com a mãe, os avós e a irmã mais nova, Mitsuko, na região rural, onde cultivam trigo. Segundo o seu avô, um ex-professor que sempre tem histórias interessantes para contar, as pessoas vivem praticamente da mesma maneira na região há mais de mil anos. E para alguém com tanta sede de informação como Shinko, nada melhor do que ter a imaginação super ativa o tempo todo, para tornar mais interessante aquela região que aparentemente parou no tempo.
Mas "imaginação" é pouco para explicar a mente de Shinko. Segundo ela, a culpa é de seu redemoinho revolto na franja, carinhosamente chamado por ela de "mai mai", que parece captar ondas de algum lugar, ativando sua criatividade e mesclando realidade e fantasia de forma natural. Shinko tem um prazer especial em imaginar como era a região no passado distante, quando a cidade chamava-se Kokuga, era a capital da província de Suou e o mar ocupava grande parte do território - os japoneses expulsaram o mar daquela área mais ou menos como os holandeses fizeram em seu país. Shinko tem uma curiosidade a respeito de uma certa princesa que parece ter vivido à época, e fica sempre uma dúvida no ar se tudo aquilo é apenas fruto da imaginação de Shinko, ou se existe alguma comunicação entre as garotas que transcende o tempo.
A chegada de uma garota chamada Kiiko Shimazu causa uma reviravolta na vida de Shinko. Kiiko acabou de chegar de Tóquio, acompanhando seu pai, o Dr. Shimazu, que trabalhará como médico numa importante fábrica da região. Com suas roupas elegantes, movimentos delicados timidez extrema e semblante triste, Kiiko parece totalmente deslocada, especialmente dentro da sala de aula. Mas para alguém curiosa como Shinko, um espécime diferente daqueles é interessante demais para passar despercebido, e uma intensa amizade começa a se desenhar.
Apesar de "Mai Mai Miracle" realmente ter muita coisa que lembra "Totoro" (amigos imaginários) e "Omohide Poro Poro" (vida simples na área rural do Japão), o pessoal da Madhouse não tentou simplesmente copiar o que o Ghibli faz tão bem. O clima é muito parecido, mas há um toque todo especial da Madhouse em todos os cantos, desde o estilo do traço usado nas paisagens e nas construções até o desenho de personagens. Aqui, sim, a palavra "homenagem" se encaixaria muito bem, já que muitas vezes ela é apenas um eufemismo usado para atenuar um plágio descarado.
Ainda que não seja tão incrível tecnicamente quanto as obras supracitadas do Ghibli, "Mai Mai Miracle" conta com a competência habitual dos membros da Madhouse, com uma fusão incrível de 2D com 3D e tomadas de câmera muito criativas e funcionais, o que é muito importante, já que é fácil cair na tentação de criar firulas visuais só para aparecer.
A atenção aos detalhes é fundamental para mostrar com clareza a diferença dos mundos em que vivem Shinko e Kiiko. A primeira tem uma vida feliz com a família numa casa simples, com patos e galinhas no quintal e brinquedinhos que acompanhavam os caramelos Glico. Kiiko, por outro lado, vive numa casa elegante cheia de objetos caros e chiques, com geladeira a gás (uma super novidade à época), mas sente um vazio emocional após a morte recente da mãe. E tudo isto transparece nas sutilezas de comportamento e movimento de cada uma das garotas, que aos poucos afetam sobremaneira a forma como cada uma enxerga e lida com o mundo.
A belíssima trilha sonora sinfônica de Minako Obata e Shusei Murai, este último compositor da também excelente trilha de "The Tibetan Dog", é fortemente centrada em violoncelos, que com sua sonoridade característica, dão um tom levemente melancólico às cenas mais dramáticas. O uso de "pizzicatos" e suaves vozes femininas em cenas mais alegres também funcionam que é uma beleza.
O roteiro de "Mai Mai Miracle" utiliza o humor com inteligência em momentos dramáticos, fazendo com que algumas situações potencialmente piegas fluam com naturalidade, sem martelar a tristeza na cabeça do espectador. Há um momento que demonstra isto de forma particularmente brilhante, ligado a garrafinhas de chocolate e uma explicação sobre a função do óleo de rícino. E há outros momentos deliciosos que remetem à famosa cena do abacaxi em "Omohide Poro Poro", mostrando o quanto os pequenos prazeres da vida é que realmente marcam, como construir uma represa no riacho, entrar de penetra no cinema ou realizar missões "perigosas" com o incomparável "Esquadrão Ou Vai, ou Racha". :)
"Mai Mai Miracle" dá apenas uma pequena desandada no terço final. Há um arco envolvendo um peixinho-dourado que se alonga bem mais do que deveria, atrapalhando um pouco o ritmo perfeito da animação até então. Há ainda a história do taciturno Tatsuyoshi, um garoto de bom coração mas que parece se sentir meio diminuído na presença do pai, um policial virtuoso no kendô e considerado um verdadeiro herói na região. Estes dois arcos que se entrelaçam são um pouco arrastados, tendem ao dramalhão e tiram um pouco o foco da excelente história de amizade entre Shinko e Kiiko.
Mas é um defeito menor. "Mai Mai Miracle" teria sido praticamente perfeito se não fosse este probleminha rumo ao final. É uma excelente animação com a cara do Ghibli, mas com várias sutilezas que deixam bem claro se tratar de mais uma obra fenomenal deste fantástico estúdio chamado Madhouse. Se você curte um bom "slice-of-life", pode assistir sem medo de ser feliz. ;)
Marcelo Reis