quarta-feira, janeiro 18, 2017

Curtas sobre Curtas #06

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 18/01/2017

Dando continuidade à série "Curtas sobre Curtas", temos duas animações com temáticas e estilos visuais completamente distintos. Em comum, a excelente qualidade de ambas.


THE BIG SNIT

Muita gente costuma dizer que toda e qualquer coisa é passível de se tornar objeto de humor. Pessoalmente, não concordo muito com isto. Por exemplo, acho de um mau gosto incrível fazer piadas sobre pessoas que acabaram de morrer, independentemente se são pessoas famosas (Ayrton Senna, Mamonas Assassinas, etc) ou não. Acho falta de respeito não só com quem morreu mas, principalmente, com parentes e amigos de quem faleceu, que além de ter que lidar com a dor da perda, são obrigados a ouvir gracinhas e desrespeitos às custas do ente querido que morreu.

Outro exemplo de humor com um assunto sério que não me agradou: o filme "A Vida É Bela", de Roberto Benigni. À época do lançamento do filme, houve um clima meio de guerra, meio Copa do Mundo, por causa da rivalidade com "Central do Brasil" em função da disputa do Oscar para Melhor Filme em Língua Estrangeira em 1998. Mas meu desagrado com o filme não tem a ver com isto, apesar de ainda achar uma injustiça sua premiação em detrimento do belíssimo filme de Walter Salles Jr. Não curti mesmo o fato do filme fazer humor com o Holocausto, gerando situações engraçadinhas em um ambiente que, na vida real, era um verdadeiro inferno na Terra. Muita gente gostou, mas este tipo de humor não é pra mim.

E o que todo este falatório tem a ver com "The Big Snit"? O fato desta animação canadense fazer humor com outro assunto muito sério: a destruição do mundo por uma guerra nuclear. E sabem o que é mais incrível? Eu amei esta animação! Como isto é possível? Continuem lendo pra saber.

Escrito e dirigido por Richard Condie em 1985 e produzido pela National Film Board of Canada, "The Big Snit" foi muito premiado ao redor de todo mundo (Annecy, Genie Award, entre outros), além de ter sido indicado ao Oscar de Curta de Animação em 1986. Numa cidade qualquer, um casal está jogando palavras-cruzadas de tabuleiro. A esposa, com um cabelão "à la" Marge Simpson e olhos que insistem em sair de foco - precisando inclusive ser arrancados da cara e sacudidos pra voltar ao normal - aguarda que seu marido faça a sua jogada, para que ela possa fechar a partida. O marido com dentes de retroescavadeira, por outro lado, encontra-se numa "sinuca de bico", e ainda assim continua tentando uma solução para um problema impossível.

Cansada de esperar, ela resolve ir arrumar a casa neste meio-tempo. O marido aproveita para ver seu programa favorito: "Aprenda a Serrar para Adolescentes", e fica doido pra serrar sofá, mesa e o que mais pintar na frente. Tamanha excitação o faz cair no sono um pouco depois, e em função disto, nem ele nem a esposa, que estava fora da sala, veem um boletim urgente na TV, dizendo que uma guerra nuclear global acabou de ser deflagrada. Tudo começa a entrar em colapso, as pessoas entram em pânico, mas o casal, alheio ao que está acontecendo, tenta voltar ao jogo, começa a discutir por motivos fúteis, sem imaginar que o mundo está em seus momentos finais.

"The Big Snit" possui traços bem cartunescos e simples, com colorido suave, e uma animação de boa qualidade. A dublagem do casal é excelente, especialmente nos momentos em que a briga entre ambos começa a esquentar pra valer. E não dá pra esquecer do hilário gato de estimação dos dois: só ouvindo os gritos dele pra entender.

O diretor Richard Condie conseguiu a proeza de tratar um assunto sério como o holocausto nuclear com humor, sem apelar nem forçar a barra, e mantendo o bom gosto o tempo inteiro. Talvez seu grande mérito tenha sido manter o foco no relacionamento pessoal do casal, mostrando como as pessoas gastam tempo e energia brigando por tolices e futilidades enquanto o mundo está literalmente chegando ao fim do lado de fora. E o fato do casal realmente não ter idéia do que está acontecendo torna tudo muito crível, mesmo com todo o humor exagerado. Por outro lado, o desconhecimento de ambos do que está por vir acaba fazendo com que seus últimos momentos sejam mais plenos e satisfatórios do que para o restante da população. E fica a dúvida: até que ponto o conhecimento sobre algo pode ser melhor que a ignorância, e vice-versa?

Assim como o humor em "A Vida É Bela" não me agradou, pode ser que o humor em "The Big Snit" não agrade a algumas pessoas. Mas se tiverem um tempinho e disposição, deem uma chance a esta animação de apenas 10min. Pode ser que tenham uma agradável surpresa.


NO ROBOTS

Em algum momento no futuro, robôs fazem parte da vida cotidiana, mas a convivência com os humanos está longe de ser pacífica. Constantemente presos pela polícia e agredidos por uma turba ensandecida que pede o seu banimento, os robôs precisam viver na clandestinidade.

Um comerciante decide colocar uma placa de "Proibido Robôs" na entrada de sua confeitaria. Mesmo parecendo ser uma pessoa instruída, com vários livros em sua estante que criticam a intolerância (O Senhor das Moscas, O Sol É Para Todos, O Jogo do Exterminador), o comerciante parece cego e embarca na onda de ódio irracional da turba contra os autômatos. E quando ele descobre que um robôzinho está roubando leite de sua loja, o cara fica simplesmente possesso, deixando no ar a dúvida: quem é o verdadeiro ser irracional aqui?

Projeto em conjunto do taiwanês Yung-Han Chang e da americana Kimberly Knoll, alunos à época da San José State University Animation/Illustration, "No Robots" possui um estilo visual que lembra muito as obras de Masaaki Yuasa (Mindgame), especialmente na movimentação dos personagens. Os traços são suaves e expressivos, e os cenários, apesar de não serem super detalhados, são bem-feitos e de muito bom gosto, tudo isto em uma palheta também suave, de tons pastéis. A animação é muito bem-feita, e há um ótimo jogo de luz e sombras ao longo da obra. E completando a parte técnica, uma trilha sonora sutil e eficiente à base de percussões e piano, que aparece apenas para completar o efeito desejado nas cenas.

Numa obra sem diálogos, em que cenas nas quais os personagens aparentemente "falam" contém apenas grunhidos ininteligíveis, é de vital importância que a narrativa consiga se desenvolver usando apenas as imagens e sons, e "No Robots" consegue fazer isto muito bem. É uma obra que, de certo modo, retrata algo bem próximo de nós no Brasil de 2016, com toda a intolerância contra quem pensa diferente em termos políticos ou vive de forma considerada torpe ou impura pelos ditos "cidadãos de bem". É preciso tentar entender o outro, compreender suas motivações, buscando uma vida em harmonia.

Emocionante sem ser piegas, "No Robots" mostra uma maturidade narrativa e visual surpreendente, levando-se em conta a juventude e a pouca experiência de seus realizadores. Não é apenas um projeto estudantil de qualidade: é um curta de animação excepcional, com acabamento profissional e um enredo envolvente.

PS: Há uma cena após os créditos.


Marcelo Reis


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