domingo, novembro 06, 2016

As Memórias de Marnie (Movie)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 06/11/2016

Alternativos: Omoide no Marnie, When Marnie Was There
Ano: 2014
Diretor: Hiromasa Yonebayashi
Estúdio: Studio Ghibli
País: Japão
Episódios: 1
Duração: 102 min
Gênero: Drama / Psicológico



Quem já brincou de "telefone sem fio", de preferência com várias pessoas ao mesmo tempo, sabe que a mensagem que chega ao final da corrente muitas vezes não tem absolutamente nada a ver com a mensagem original. De certa forma, foi mais ou menos a mesma coisa que aconteceu no início de agosto de 2014, no Japão, aproximadamente um ano depois de Hayao Miyazaki anunciar sua aposentadoria, desta vez definitiva. Quando Toshio Suzuki, ex-presidente do Ghibli, anunciou que o estúdio faria uma pausa temporária na produção de longas-metragens de animação, para reavaliar as diretrizes do estúdio após a aposentadoria de Miyazaki, o caos se instalou: em questão de minutos, como um vírus, espalhou-se pelo mundo a notícia apocalíptica de que o Studio Ghibli nunca mais produziria um filme. E por algum tempo, "As Memórias de Marnie", lançado em meados de julho de 2014, foi considerado o último filme a ser produzido pelo Studio Ghibli em todos os tempos.

"As Memórias de Marnie" é baseado no livro "When Marnie Was There", da autora inglesa Joan G. Robinson, escrito em 1967. No livro, a protagonista vive em Norfolk, Inglaterra, enquanto no anime ela reside na cidade de Sapporo, em Hokkaido. Mas pelo que conferi em alguns textos, apesar da mudança de ambientação da Inglaterra para o Japão, a essência do enredo foi mantida intacta.

Anna Sasaki é uma garota que, em suas próprias palavras, faz parte daqueles que vivem "fora do círculo": não tem amigos, tem dificuldades para se enturmar, e praticamente só encontra felicidade nos momentos em que pode se dedicar à sua grande paixão, que é desenhar. Anna perdeu os pais e a avó quando jovem e foi mandada a um orfanato, sendo adotada por um casal que a ama de verdade. Anna era uma criança alegre e interativa mas, por algum motivo, passou a ficar taciturna, distante e triste, e a ansiedade resultante disto passou a desencadear crises cada vez mais fortes de asma. Por esta razão, Yoriko, sua mãe adotiva, resolve mandá-la pra casa de parentes que vivem à beira-mar, na expectativa de que o ar puro e a calma do interior melhorem sua ansiedade e, por tabela, sua tristeza e sua asma.


Anna passa os dias convivendo educadamente com seus divertidos e compreensivos anfitriões, mas ansiosa para poder sair e desenhar as belas paisagens da região. Certo dia, um casarão abandonado e com fama de mal-assombrado, localizado à beira do pântano, chama sua atenção. Tudo parece morto e sem vida, mas Anna tem a impressão de ter visto luzes e pessoas por ali. O desenrolar dos fatos leva Anna a conhecer Marnie, uma garota linda e cheia de vida, e imediatamente surge uma atração forte entre as duas. Mas como Marnie poderia viver naquele casarão vazio e sem vida? E por que razão o local parecia renascer à noite? Seria Marnie apenas fruto da imaginação de Anna, ou algo aparentemente inexplicável estaria acontecendo?

Elogiar a qualidade técnica de um anime do Ghibli chega a ser redundância, mas o estúdio consegue novamente entregar uma obra absolutamente irrepreensível visualmente. Eu adoro animações produzidas em CGI, sou fã de carteirinha da Pixar, mas existe um algo a mais em animações tradicionais que é difícil de explicar. E a equipe do Ghibli é mestre em criar momentos que dão arrepios na gente: na perfeição dos movimentos quando Anna toma um tombaço enquanto corre; nas sutis mudanças de expressão facial da garota, mostrando o verdadeiro turbilhão de emoções que se encontram dentro dela; nos detalhes em cada personagem em cena durante um baile de gala no casarão.

O diretor Hiromasa Yonebayashi, que já havia feito um trabalho soberbo em seu filme de estréia, "O Mundo dos Pequeninos" (Karigurashi no Arrietty), repete a dose em "As Memórias de Marnie". Yonebayashi também cuidou do roteiro, ao lado de Keiko Niwa - responsável pelo roteiro de quase todas as obras mais recentes do Ghibli - e de Masashi Ando, este último acumulando ainda as funções nada desprezíveis de desenhista de personagens e diretor de animação. Não deve ter sido tarefa fácil adaptar uma obra ambientada na Inglaterra e com protagonistas inglesas para um país totalmente diferente como o Japão, sem deixar a narrativa vazia ou forçada, mas os três roteiristas adicionaram detalhes sutis (Anna com olhos que parecem de estrangeira, casarão que recebia estrangeiros no passado) que tornam a adaptação natural e bastante crível.

Yonebayashi ainda consegue manter o suspense o tempo todo em relação ao que está realmente acontecendo ao longo do relacionamento entre Anna e Marnie, jogando algumas pistas aqui e ali para ajudar o espectador a montar o quebra-cabeça. Quem for um pouquinho mais antenado conseguirá matar a charada antes da hora, mas mesmo que isto aconteça, não reduzirá em nada o impacto emocional da história. Interessante notar que tanto "Marnie" quanto "Divertida Mente", dois dos indicados ao Oscar 2016 de Melhor Longa-Metragem de Animação - sendo que o filme da Pixar foi o vencedor do prêmio - tratam dos sentimentos, emoções e alterações psicológicas da personagem principal, mas de formas totalmente distintas, e igualmente brilhantes.



Se "As Memórias de Marnie" fosse realmente o último filme do Ghibli, faria um excelente papel como obra de despedida deste estúdio mítico. É um anime emocionante na dose certa, com algumas pitadas de fantasia que não afetam negativamente o lado mais realista da narrativa. Possui personagens cativantes e muito bem construídas, e momentos memoráveis que ficarão na lembrança por muito tempo. Ainda bem que não será o último filme do Ghibli: um mundo sem novos animes do estúdio seria triste demais.


Marcelo Reis


 

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